domingo, dezembro 26, 2004

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de 26 de Dezembro, 2004


antes e depois

Luís David

saber perder é uma questão de dignidade

A história repete-se. Parece repetir-se. Ciclicamente, de cinco em cinco anos. Sempre que há eleições, o discurso da oposição repete-se. É um discurso sempre igual. Aberrante, chato, enfadonho. Porque é, sempre e invariavelmente, o discurso da fraude. Por antecipação, o discurso da fraude. Do género se eu perder é porque houve fraude. E, sendo por antecipação o discurso da fraude, pode ser também, é também, o discurso de quem, em consciência, parte derrotado para a corrida eleitoral para o mais alto cargo da República. Nesta perspectiva, sendo, como parece, um discurso infantil de candidato antecipadamente derrotado, é, acima de tudo um discurso masoquista. O discurso de quem se propôs auto-flagelar-se com a derrota. O discurso do injustiçado. O discurso de quem, sabendo e tendo consciência que tinha condições poucas ou nenhumas para ser eleito Presidente da República, reclama, agora, dever ter sido o eleito se... Exactamente se...



No antes das eleições agora realizadas, a RENAMO terá começado por cantar vitória fácil. Aparentemente, ensaiou um discurso confiante. Um discurso, digamos, triunfante. Um discurso triunfalista. Mas, discurso que só poderia convencer quem o proferia. E, mais do que tudo, quem aconselhava a proferi-lo. E, aquilo a que a alguns poderá ter parecido uma jogada de antecipação, poderá não ter sido mais do que um erro de estratégia. E, nestes casos, erros de estratégia pagam-se com derrotas, pagam-se com o adiar, por mais cinco anos, a conquista do poder. É que, a realidade nem sempre, ou raramente, corresponde ao desejo ou ao sonho. E, quando se acorda do sonho, do dormir suave e tranquilo, da ilusão por alguns criada e por outros alimentada, e a realidade é outra, é difícil ter de aceitar a realidade tal como é. É difícil ter de aceitar a derrota. Mesmo quando, ou sobretudo, aqueles a quem tanto se pediu protecção, aqueles a quem tanto se pediu observação isenta e imparcial aí estão, muito clara e inequivocamente, a confirmar a vitória de quem venceu. União Europeia, França, Estados Unidos da América não tiveram dúvidas sobre quem venceu as eleições, em felicitar, no imediato, o vencedor. Ora, quando perante esta realidade, que parece contrariar o sonho de alguém, se registam novas ameaças, corremos a ousadia de ter de afirmar, por muito que pareça paradoxo, que as eleições, sendo o que foram, deveriam ter sido coisa diferente. Para consentir a vitória a quem se dizia vencedor. Sem dúvida, ninguém gosta de perder. Mas, convenhamos, saber perder é uma questão de dignidade.
Publicado em Maputo, Moçammbique no Jornal Domingo de 19 de Dezembro, 2004

antes e depois

Luís David


uma extrema aberração


Em diferentes ocasiões e por diferentes motivos, fala-se em lusófono e em lusofonia. Há, até, reuniões, congressos, festivais de lusófonos e em nome da lusofonia. Pretende-se, ao que parece, nestas reuniões em que se encontram homens e mulheres de origens e de culturas diferentes e diversas, tentar afirmar que, afinal as partes constituem um todo. Pretende-se, em síntese e em tese, ao que parece, tentar fazer acreditar que os colonizados de ontem, ao assumirem ou ao terem sido forçados a assumir certos valores do colonizador, são hoje seus iguais. Fazem parte do seu mundo cultural, étnico e linguistico. Que todos se identificam numa cultura lusófona. Que ninguém sabe o que é, por em momento nenhum ter sido estudada, menos ainda definida. Que é, por exclusão de partes, coisa nenhuma. Que não existe. Ou, melhor, existe apenas e unicamente como neologismo. Não passa de uma palavra nova. Que, podendo não ser mais do que isso, também o pode ser. Pode ser uma palavra, pode ser um neologismo, com um sentido e um significado neocolonialista. Certamente que assim pode ser, que assim é.


No seu ensaio filosófico, a que deu o título “O Enigma Português”, F. Cunha Leão, falecido em 19774, busca as origens da fundação e da sobrevivência de Portugal ao longo dos séculos. E, escreve (pag. 89): Herculano contestou com veemência a filiação lusitana dos portugueses fundada na história de Roma e defendida pelo renascimento eborense. Segundo ele as sucessivas invasões e razias que o território sofreu por tão diversos povos reduzem a mera soberbia infundada essa tentativa genealógica de ir buscar fama a Sertório e a Viriato. Nas suas “20 Teses” sobre o tema referido, talvez a parte mais importante da obra, parece bem claro: 1) Uma parte da Galiza e outra da Lusitânia formaram Portugal. (...) 3) Lusos e galaicos distinguem-se, posto que povos individualizados em finisterra, de parentesco próximo e afinidades incontestáveis. 4) O português é uma síntese de lusitano e galaico, um luso-galego e só metaforicamente lusitano. Mais diz o filósofo, que escrevia em 1960 (tese 14), Os descobrimentos e a colonização constituem por isso a suprema afirmação dos portugueses, a linhas das comeadas do seu contorno histórico, e bem assim o complexo fenomenal que mais aproveita à interpretação da Grei. Ora, se bem entendo e se bem interpreto o filósofo, o lusitano nunca existiu. E, nesta linha de pensamento, se o lusitano não existiu, se não existiu no seu estado puro ou se existiu apenas como mestiçagem, como produto de um caldear de culturas, não poderá ser outra coisa se não um híbrido. Assim, assim não existindo, como parece não existir, o luso ou o lusitano, menos motivos parece haver para que possam existir lusófonos e lusofonia. De resto, e por fim, à luz do exposto, parece fazer sentido nenhum que homens e mulheres de origem e de cultura baniu alguma vez possam vir a ser lusófonos. Estamos, no mínimo, perante um equívoco, uma extrema aberração.

domingo, dezembro 12, 2004

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de 12 de Dezembro, 2004

antes e depois

Luís David


algo está errado

Parece não existiram muitas dúvidas que a abstenção em processos eleitorais é, hoje e desde há muito tempo, um fenómeno à escala mundial. Universal. Um fenómeno que, diga-se, deixou de ser fenómeno para entrar, para fazer parte da normalidade. Embora a todos preocupe e todos os Estados democráticos, de uma forma geral, procurem meios para combater a abstenção. Sempre, repita-se, sempre tendo em atenção a relação custo/benefício. Isto é, que qualquer processo alternativo ao tradicional depósito do voto na urna não provoque aumento de custos. Esta é a posição divulgada, recentemente, pelo Instituto para a Democracia e Apoio Eleitoral (IDEA), um centro de investigação sediado em Estocolmo, na Suécia. Um sistema com resultados comprovados, segundo o IDEA, em relação a diversos países da Europa, tem sido o voto pelo correio. Que, em alguns casos está em fase experimental e noutros consolidado. Hoje, segundo a mesma fonte, cerca de quatro por cento dos votantes na Grã-Bretanha e 40 por cento da Finlândia votam pelo correio. Na Suécia, desde 1942, todos os cidadãos, sem aviso prévio, podem dirigir-se a um posto dos Correios e votar em impressos próprios para o efeito. Isto acontece, claramente, em países onde os Correios funcionam e onde a realidade é completamente diferente da nossa. Mas, independente de todas as considerações que se queiram fazer e admitir, serve para demonstrar que em Estados onde a democracia tem muitas e muitas décadas, o chamado fenómeno abstenção começou a ser combatido há mais de meio século.


Tem sido dito e repetido, com mais do que demasiada insistência, que a elevada percentagem de abstenção nas últimas eleições representa um aviso aos políticos. Uma ameaça aos futuros governantes. E, até se não com algum exagero, que quem vier a governar, por eleito, com tão reduzido número de votos, pouco ou nenhuma legitimidade terá para governar. São, obviamente, leituras possíveis, leituras respeitáveis, opiniões a não desconsiderar. Temos, no entanto, de aceitar que leitura diferente não deva ser rejeitada. Não deva ser recusada. Isto é, que uma leitura moçambicana de melhoria de vida e de mudança possa não ser, exactamente, aquela que outros tentam fazer. E que, talvez, é necessário admitir, terão dificuldade em comunicar. Comparar o último processo eleitoral com os anteriores, como, em alguns casos tem sido tentado, parece um processo arriscado. Por falta de contexto. As realidades sociais e económicas reinantes e dominantes em cada um dos momentos são completamente diferentes. E, aceitemos, os motivos que levaram a votar ontem podem não ser os mesmos que levaram a votar hoje, Assim como os motivos que levaram a votar ontem podem ser os mesmo que levaram a não votar hoje. Mas, convenhamos, em última análise, a questão principal parece não ser a do motivo pelo qual muitos não votaram. Mas a de criar novas e diferentes condições para que mais possam votar. Ou, e talvez seja o caso, como titulava o “Notícias”, na sua edição da última quinta-feira, uma questão de Simplificar o processo de votação. Caso assim seja, e parece que assim é, tudo o resto é um exercício inútil. Basta que estejamos todos de acordo no essencial. No fundamental. E que acordemos para a realidade de que o fenómeno das abstenções, em processos eleitorais democráticos, começou a ser estudado há mais de cinco décadas. E, se situações semelhantes ou idênticas se repetem em tão diferentes países não é, certamente, por o eleitor estar errado. Embora, concordemos, algo está errado.
Publicado em Mpauto, Moçambique, no Jornal Domingo, de 5 de Dezembro, 2004

antes e depois

Luís David

saber criar

Coisa difícil, parece ser, é, não escrever após as eleições sem ser sobre eleições. E, escrever sobre as recentes eleições, neste momento, é, terá de ser, evitar engrossar a corrente, aparentemente dominante e dominadora, daqueles que se perfilam, que se perfilaram, para pedir estudos e investigação do que consideram como fenómeno da abstenção. Querem saber uns, querem conhecer outros, o motivo, a causa, a razão que levou o camponês a preterir a mesa de voto em alternativa à machamba e o citadino a optar pela praia ou pelo copo na barraca em alternativa a cumprir com o seu dever cívico. São, logicamente, preocupações legítimas. Intelectualmente legítimas. Talvez, arrisco sugerir, desfasadas da realidade cultural nacional. Se sim ou se não, os estudos, a fazer no curto e no médio prazos, pagos, muito hipoteticamente, por quem suportou os custos destas eleições, irão surgir. Irão, virão dizer-nos, virão tentar provar aquilo que já foi dito e ficou provado em eleições anteriores. Este modelo, caro, demasiado caro para a nossa realidade e que se presta a grosseiras intromissões estrangeiras, está esgotado. Na pior das hipóteses, é necessário pensar. Mesmo quando todos sabemos que pensar é exercício difícil. E, arriscado. Principalmente quando os bonzos já estão perfilados.


Pessoalmente, mal conheci António de Almeida Santos. Doutor em Leis, formado na Universidade de Coimbra, aqui se fez radicar há muitas décadas. Depois do 25 de Abril, regressado a Portugal, fez parte de diferentes governos. Foi Presidente da Assembleia da República. Na Minerva, descobri, um dia, textos e fotografias da sua vinda a Moçambique. Numa casa de venda de discos, que existiu no prédio das arcadas, hoje EMOSE, recordo ter comprado, já a preço de saldo e pouco antes de encerrar, vários exemplares de um disco seu, com fados de Coimbra. Um disco dos seus tempos de fadista e de boémio. Mais recente, mais recentemente, tive oportunidade de ler dois dos últimos dos muitos livros que escreveu ao longo da sua vida. Num, com cerca de 400 páginas “Por favor preocupem-se”, cuja quarta edição tem data de 1999, revela as suas preocupações sobre os problemas actuais, manifesta o seu cepticismo em relação à democracia participativa perante os avanços das novas tecnologias e escreve: O velho expediente de reunir no adro da igreja todos os cidadãos de uma minúscula unidade política para, de braço no ar, decidirem o que achavam melhor para a respectiva comunidade regressará, tecnologicamente alargado, ao espaço nacional, continental, universal amanhã. Mas antes, muito antes, logo na página 8 da mesma obra nos havia advertido: Tendemos a rejeitar o que nos desagrada. Em contraponto acreditamos facilmente no que desejamos. Daí que as posições confiadas e relaxantes colham mais adesões do que as advertências pesadas. Ou, parafraseando Nietzsche, Não é no conhecimento, mas sim na criação que está a nossa salvação. Então, para além de conhecer, do muito conhecer, por muito se poder vir a investigar e conhecer, há que saber criar. Assim, temos e havemos de saber criar. Porque, assim o diz o filósofo, a nossa salvação não está no imitar. Não está no copiar. Não está no saber copiar. Afinal, estas, tarefa medíocre, tarefa de medíocres, tarefa de bonzos. A nossa tarefa está em criar. Em saber criar.