domingo, fevereiro 20, 2005

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de 20 de Fevereiro, 2005

antes e depois

Luís David


em Moçambique manda o chumbo


Logo que o novo Governo entrou em funções e que foram conhecidos os métodos de trabalho de alguns dos seus membros, surgiram, daqui e de além, comentários de apoio e de desagrado. Estranho seria acontecer de forma diferente. Houve, até, quem tivesse vindo a público, talvez com certa timidez, afirmar que estamos perante uma Ofensiva. Uma Ofensiva Política e Organizacional para evocar o que aconteceu no tempo de Samora Machel. Em minha opinião, estamos perante algo diferente. Estamos a assistir à tentativa de ensaio de um modo de governar diferente. A uma forma de governar actuando em bloco e em diferentes frentes. Isto dado que, se o tempo de Samora era ele o único protagonista do processo, no tempo presente os protagonistas são, no momento, vários. E, também, porque se no tempo de Samora estávamos em plena época revolucionária, hoje, no momento presente, vivemos num Estado de Direito. Lógico, muitos dos métodos utilizados nesse tempo é impensável que possam ser utilizados hoje. Embora os objectivos a atingir possam não ser muito diferentes. Sem perder de vista que se no tempo passado o objectivo principal era mudar a mentalidade do homem, criar o chamado Homem Novo, hoje já se percebeu ser necessário alterar estruturas, aperfeiçoar e modificar leis.


É demasiado cedo, é prematuro, tentar fazer qualquer tipo de avaliação sobre o que cada um dos membros do Governo fez ou deixou de fazer. Mas, sem tentar influir nas suas agendas de trabalho, nas suas prioridades, parece lícito deixar expresso o que se pensa em ralação a algumas questões consideradas importantes. Assim, em primeiro lugar, coloque-se a questão de saber a quem serve ou quem se serve do Regulamento do Regime Jurídico do Condomínio. Na prática, nunca foi aplicado. Em Moçambique, tal como foi copiado da legislação que vigora em Portugal, não tem a mínima hipótese de o vir a ser. Este Regulamento é, em última análise, uma nado morto. Mas, um nado morto, porque assim se quis que fosse para proteger certos interesses pouco claros. Em segundo e último lugar, por hoje, importa saber que motivos ou que interesses económicos impediram e impedem a actualização da legislação sobre funerais. No caso em que os corpos venham do exterior ou sejam depositados em jazigos. Porquê que continuamos a aplicar legislação que vigorou em Portugal há mais de quatro décadas. Porquê, a questão está em saber o motivo pelo qual continuamos a exigir urnas de chumbo e recusamos urnas de zinco. A questão está em saber, também, qual o motivo pelo qual não adequamos a nossa legislação à legislação nos países da região em que nos situamos. Por exemplo, África do Sul. Um documento, da Associação dos Directores das Funerárias Independentes deste país, datado de 8 de Janeiro de 2001, dirigido A quem possa interessar diz que Confirma-se que na África do Sul, as urnas de chumbo foram substituídas por zinco desde há 40 anos, sem experiência de qualquer problema. Recentemente, muito recentemente, passam poucos meses, e este não é caso único, um corpo em caixão de zinco, depois de velado na Igreja da Polana não teve autorização para ser depositado em jazigo de família no Cemitério de Lhanguene. A direcção de Saúde da Cidade de Maputo exigiu caixão de chumbo. E, como quem manda pode, mesmo quando manda mal, o corpo, depois de velado, de encomendado a Deus pelo padre, regressou, foi obrigado a regressar a uma das capelas do Hospital Central de Maputo. Aí passou a noite, a última noite entre os vivos, certamente desconhecendo a dor e o sofrimento que a decisão estava a provocar aos familiares. Vivos. Para, depois de trocado o zinco pelo chumbo poder seguir, no dia seguinte, para sua última morada. De facto, apesar de recusado em muitos países, em Moçambique manda o chumbo.

domingo, fevereiro 13, 2005

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de 13 de Fevereiro, 2005


antes e depois

Luís David


quem trava esta falta de moral e de ética

No nosso país, com não rara frequência, falamos da falta de valores. Da perda de valores. Elaboramos sobre comportamentos que consideremos errados. Á imagem do que foram os comportamentos de ontem. Que tomamos como modelo, como ideal. Dizemos que já não há Ética nem Moral. Mais e invariavelmente, o mal é dos outros, o mal está nos outros. Com os pais que não sabem educar os filhos ou com os filhos que não respeitam os pais. O mesmo é dizer, os mais velhos. Temos, quase sempre, um horizonte curto. Limitado. Não no atingir da vista mas no alcançar do pensamento. Pensamos curto. E, pensar curto, pensar que o mundo e o mundo actual ainda não vai para além da nossa rua, do nosso bairro, da nossa cidade, do nosso país é limitar, à partida, a solução. Queremos viver, queremos fazer repor a ordem antiga. Por pretendermos que seja melhor do que a actual. Queremos viver no presente o passado. Não percebemos que o passado foi, o presente é, o futuro será. Apelamos para a ajuda da Igreja, pedimos à sociedade civil para agir. Uma sociedade civil que ninguém sabe, nem mais nem menos, o que é. Que hipoteticamente só possa existir em teoria. E, esquecemos, ou fazemos, voluntariamente, por esquecer, dois elementos que parecem ser fundamentais: Nós próprios, cada um de nós, e o Estado. Ou, se assim se preferir, por ordem inversa, o Estado e cada um de nós. Onde, cada um de nós não pode abdicar da missão de pressionar o Estado no sentido de impor, repito, impor aquilo que devam ser os valores éticos e morais dominantes.


Pode parecer repetitivo afirmar que estamos a viver numa fase de capitalismo selvagem. Numa fase de capitalismo sem regras, sem normas, sem ética, sem moral. Pode parecer mas não é. Basta tomarmos como exemplo as campanhas publicitárias que estão a ser desenvolvidas pelos dois operadores de telefonia móvel. Campanhas essas que estão a custar muitos milhões de contos. Para concluir ser necessária e urgente a intervenção do Estado. Diz o anuncio de uma dessas empresas: Josefina, te agramo muito. Trata-se, obviamente, de um texto escrito por um burro. E, como os burros, nas últimas eleições, não tiveram direito a voto, deve ser tornado público quem escreveu o texto. Sobretudo, para que as nossas crianças e os adolescentes não adoptem este mau exemplo de escrever português. A outra empresa de telefonia móvel, que tem revelado um total incapacidade para escrever textos, bons ou maus, optou por utilizar imagens de símbolos e de Heróis Nacionais. Craveirinha e Samora fizeram bem mais por Moçambique do que aquilo que pretende que eles possam ter feito para poderem, para se darem ao direito, de utilizarem as suas imagens em campanhas publicitárias de medíocre qualidade. Sem criatividade, muito menos imaginação. Gostava também de saber, apenas por simples curiosidade, se os familiares de Samora e de Craveirinha autorizaram a utilização das fotografias dos seus mortos em anúncios publicitários. Se sim, tudo bem. Devem ter recebido muitos milhões e devem dizer, publicamente, quantos. Se não, devem dizer, igualmente, como pensam proceder. Ao Estado, ao Estado moçambicano, deixo o pedido, singelo e humilde, de esclarecimento se imagens de Heróis Nacionais podem ser vulgarizadas em campanhas publicitárias, em minha opinião, medíocres. Que enfermam de um mínimo de imaginação e que se situam no campo do oportunismo político. Bem sei, a mediocridade e a incompetência nunca pagaram imposto. E, terá sido o que valeu a muitos. Mas, hoje, o desafio está sem saber quem trava esta falta de moral e de ética.

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de 6 de Fevereiro, 2005

antes e depois

Luís David


uma visão deturpada da história colonial


Entre outros muitos convidados, a cerimónia de investidura de Armando Guebuza contou com a presença de Jorge Sampaio. Ora, Jorge Sampaio é Presidente da República Portuguesa e é com Portugal que Moçambique tem vindo a negociar aquilo a que se convencionou chamar de “dossier Cahora Bassa”. Sabia Jorge Sampaio, como sabíamos todos nós, que esta seria uma questão que a Informação lhe iria colocar. Quanto mais não fosse pelo facto de Joaquim Chissano ter manifestado, publicamente, o seu desejo de ver o assunto encerrado antes de terminar o seu mandato. Não o conseguiu. E, só por isso, só por não o ter conseguido, era motivo mais do que suficiente para confrontar Jorge Sampaio com a questão. O que aconteceu e que mereceu como resposta que “A bola está do lado moçambicano”. Ora, sem dúvida, a frase é bonita, pode ter algum efeito mediático mas vale por não acrescentar absolutamente nada para a resolução do problema. Além de que sendo bonita pode, muito bem, não reflectir, exactamente a verdade. E, depois, se a bola está do lado de cá, pode ser atirada para fora do campo. Mas o campo também fica cá. A maioria dos adeptos são de cá. E, os adeptos de cá podem, muito bem, não desejar ver continuado o jogo com esta bola. Por considerarem que não possui as características aprovadas internacionalmente para jogos de tamanha envergadura. Podem considerar, e tem todo o direito de assim considerar, que a bola está viciada. Neste caso, é necessário procurar nova bola. Mas, concluamos, para que se possa procurar segunda bola, é necessário que tenha havido uma primeira. Que nunca, ao que parece, alguém alguma vez viu. Ora, se ninguém viu bola alguma, a bola não existe. E, por exclusão de partes, se a bola não existe a bola não pode estar do lado moçambicano. A bola é, assim, e coisa outra jamais poderá ser, produto de imaginação. Por hipótese, sonho.


Para se compreender os objectivos que levaram à construção de Cahora Bassa, temos de nos saber situar no tempo. Temos de compreender, minimamente, a geo-estratégia definida para esta sub-região da região austral de África. Assim, recuando no tempo, e de forma muito resumida, os colonos brancos haviam declarado a independência unilateral da Rodésia do Sul. A África do Sul era governada por um regime branco minoritário. O Malawi, governado por Banda, aliado de Portugal, ambicionava acesso directo ao mar, através do Porto de Nacala. Salazar, juntamente com os radicais do sistema, alguns anos antes da queda que lhe viria a determinar a morte, terá pensado, mas mal e erradamente, que a construção da barragem seria a forma de evitar o avanço da guerrilha da FRELIMO para sul. E, assim, e com a fixação de um milhão de colonos portugueses no Vale do Zambeze, manter a presença colonial portuguesa nesta sub-região de África e a continuidade dos regimes minoritários da época. A Barragem de Cahora Bassa era, na sua essência e na época, um projecto que visava perpetuar o colonialismo e retardar a independência de Moçambique. Na sua essência, enquadrava-se na estratégia militar do megalómano Kaúlza de Arriaga. Pouco ou em nada estava previsto que daí viesse a beneficiar o moçambicano. Mais recentemente, a destruição de mais de 500 torres de transporte de energia para a África do Sul contou, e disso não há dúvidas, com o apoio dado à RENAMO por Governos de Portugal. Postos estes dados, e muitos outros que podem ser postos, em cima da mesa, parece haver alguma desonestidade política quando se afirma que “A bola está do lado moçambicano”. Mas, para não ter de se chegar a uma posição tão extrema, deve, no mínimo, dizer-se que Jorge Sampaio tem uma visão deturpada da história colonial.