sábado, março 27, 2004

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo
27 de Março, 2004

antes e depois

Luís David

o grande o dilema


A vida é o que é. Não o que desejamos que seja. Não o que desejamos que fosse. A vida são dualidades, a vida são cumplicidades. Talvez, multiplicidade. A vida, convenhamos e aceitemos, é constituída por contrastes e por contradições. A vida é, em simultâneo, ser e estar,. estar e ser. Sendo que ser é estar e sendo que estar é ser. Não poderá, assim, haver ser sem estar nem estar sem ser. Logo, estar é ser e ser é estar. Mesmo quando estar possa não significar ser ou quando ser possa não significar estar. Porque sendo ser e estar são realidades, talvez valores, presentes, o são, também, passados. Mas, muito mais, futuros. Ser e estar seriam, assim, passado, presente, futuro. Não, objectivamente, uma e a mesma unidade mas, objectivamente, três unidades distintas. Três unidades ou três realidades que, podendo existir em três tempos, talvez em três espaços, diferentes ou comuns, possam não ter existido. A dúvida, está em saber, em definitivo, se aquilo que pensamos saber que existe, existe, ou se aquilo que pensamos saber que não existe, não existe. E, a resposta, não sendo fácil, nunca será conclusiva. A resposta, para ser resposta séria, será, sempre, a dúvida.


Nós, moçambicanos, confrontamo-nos, no presente momento com duas realidades diferentes, talvez opostas, antagónicas. Por um lado, temos conhecimento do que concluiu a comissão de inquérito sobre o desabamento de um prédio de cinco andares, em plena cidade de Maputo. Quando se encontrava em processo de construção. E, aqui, ficámos a saber nada de novo. Ficámos a saber o que todos nós, sem sermos engenheiros, já sabíamos. Que o prédio estava ser construído como estava. Com mais areia do que cimento, com mais água do que o devia, sem... sem. O que não sabemos, o que continua a ser escondido são os nomes dos responsáveis pelo que aconteceu. Porquê, só a Ordem dos Engenheiros de Moçambique, que presidiu ao inquérito, poderá responder. Quer-se dizer, e isso parece provado, aqui temos crime. Mas, temos crime sem criminoso. No outro caso, na outro realidade, no que se tem dito sobre o julgamento do “ caso BCM” temos criminosos sem prova de terem participado em crime provado. Resumindo, num caso temos crime público e comprovado sem criminoso. O nome do, ou dos criminosos, é mantido em sigilo Em outro, em outro caso, no chamado “caso BCM”, temos criminosos, ou dizemos que os temos, mas não conseguimos apresentar prova do crime. Algo está errado. È que num lado escondemos caras e identificações. No outro, mostramos caras e não conseguimos apresentar provas. . No antigamente, eram assim as história dos polícias e ladrões. Aparentemente, estamos a brincar aos polícias e aos ladrões. De um lado estão os maus, do outro os bons. Saber quem são os maus e quem são os bons, eis o grande o dilema.

domingo, março 21, 2004

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo
21 de Março 2004

antes e depois

Luís David


Descubram quem são esses alguns




Para quem tenha memória de algumas décadas, sabe que assim era. E que pode ser comprovado através dos relatos da Imprensa da época. Sabemos, os que temos memórias desse então, serem relativamente frequentes notícias do desaparecimento de crianças. Notícias de crianças desaparecidas, que se dizia terem sido raptadas ou encontradas mortas. Sem determinados órgãos. Como sabemos, todos nós, todos os que não perderam a memória desse então, que o destino final desses órgãos humanos e dessas mortes raramente era conclusivo. Para uns, destinava-se a servir objectivos ligados à feitiçaria. Para outros, o móbil era poder cumprir ritos iniciáticos. Não raro, o desaparecimento de crianças sem deixarem rasto era atribuído a ismaelitas. Se sim se não, continua, até hoje por esclarecer. O certo, do que parece não haver muitas dúvidas, é que em certas regiões de África, como em certas regiões da Ásia, que em determinadas comunidades dos dois continentes existem, até hoje, este tipo de sacrifícios humanos. E o que se sabe, também, é que perante a necessidade de sacrifício imposto por determinadas tradições, ou se sacrifica um membro da sociedade local ou, em alternativa, se compra um sacrificado. Não admitir, não querer aceitar, como hipótese de trabalho, como hipótese de investigação, que crianças moçambicanas possam estar ser sacrificadas é, no mínimo, ridículo. Em termos de investigação, todas as hipóteses, à partida, são importantes e são válidas. E se há, como parece haver, quem procura fazer investigação, séria e honesta, porquê tentar impedir esse processo. Porquê tentar passar a mensagem de que nada há para investigar. Porquê insinuar, ou afirmar abertamente, que a província de Nampula está a ser prejudicada em termos de investimento. Porquê toda esta fobia em torno da procura da verdade. Que interesses outros, económicos mas talvez não só, estão camuflados por detrás de certos posicionamentos tão contrários a uma investigação completa. E, conclusiva. Afinal, a quem incomoda, tanto, a verdade.


Ao longo dos últimos dias, chegaram às Redacções diferentes posicionamentos sobre o alegado tráfico de menores e de órgãos humanos a partir da província de Nampula. Na generalidade, apontam para a necessidade de serem admitidas todas as hipóteses de investigação e para a necessidade de investigação. È que só fazendo uma investigação séria e honesta será possível saber se estamos perante um boato ou se estamos perante atitudes criminosas. Ter medo da investigação, e dos seus resultados, é ter medo da verdade. Se, como alguns dizem, sem terem conseguido provar, tudo não passa de invenção de mulher adoentada da cabeça, tanto melhor. Afinal, as crianças que se disse terem sido raptadas e mortas estão vivas e de boa saúde. E terá mentido quem se deu ao trabalhos de exumar os seus restos mortais. Porque delas não existem restos mortais. Estando vivas. Da mesma forma que o corpo mutilado do homem encontrado na via férrea não terá passado de montagem fotográfica. Afinal, ele até está vivo e goza de boa saúde. Como vivo está o jovem de Manica, mas talvez não de boa saúde, a quem foi cortado o pénis. Depois, por fim, a que atribuir a tentativa do presidente do Conselho Municipal de Nampula para evitar uma manifestação, pacífica, marcada para hoje, dos católicos locais. Uma manifestação contra o tráfico de órgão humanos. Todos nós, excepto alguns, ao que parece, somos contra o tráfico de crianças e de órgãos humanos. Deixo a dúvida sobre quem são esses alguns. Descubram quem são esses alguns.

domingo, março 14, 2004

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo
14 de Março 2004

antes e depois

Luís David



Demitam-se


Terá acontecido nas vésperas do Natal de 2003. Aconteceu mesmo. Na realidade, aconteceu. Um prédio, em plena fase de construção, ruiu. Aconteceu na cidade de Maputo, na zona quase central da capital do país. Deveria ter cinco andares e destinava-se à habitação. Quer dizer, caso não tivesse ruído na fase de construção, como aconteceu, poderia ter acontecido bem pior. E, bem pior, teria sido desabar quando já tivesse sido habitado por algumas dezenas de famílias. Porque desabar, haveria sempre de desabar. A questão não está em saber quanto tempo – dias, meses – que seria necessário para desabar. A questão é inversa. Está em saber quando tempo aquela construção (?) poderia manter-se de pé. Não tinha, como a todos foi possível ver, no pós desmoronamento, um mínimo de condições para vir a ser habitação de seres vivos. Evito, com algum propósito e mais razão, dizer de seres humanos. Mas, como o fenómeno de desmoronamento de um prédio destinado a habitação era algo de inédito em Moçambique, pareceu por bem, a alguns, tentar colher dividendos do acontecimento. Aproveitar-se do espectáculo que é a televisão. Afinal, até só houve uma morte. A morte de um guarda. E, convenhamos, a morte de um guarda pouco conta. Sequer conta para a história. Então convinha, como aconteceu, fazer espectáculo. Dizer que já tinha sido nomeada uma comissão de inquérito. Para averiguar. Para averiguar o quê, ainda hoje ninguém sabe.


Passados que são cerca de três meses sobre o início da sua nomeação, a referida, a então criada comissão de inquérito, continua a ter nada a dizer. Ou diz, simplesmente, que o processo é complicado, que está a fazer estudos e análises laboratoriais. Blá, blá, blá. Mais ou menos assim. Para tentar adormecer quem gosta de dormir em serviço. Todos sabemos, é público, que a construção que ruiu havia sido objecto de embargo. E de desembargo, ao que se sabe, por ter sido divulgado na ocasião, por processos menos claros. De desembargo conseguido, muito possivelmente, por artes corruptas. Como por processo menos transparentes terá sido feita a concessão do terreno. Como todos sabemos, também, que não é legal a auto-construção para edifícios que não sejam moradias, para construções de habitação própria. Sabemos, ainda, todos sabemos, sabem os engenheiros deste país, melhor do que ninguém, que o engenheiro que está à frente da dita comissão de inquérito é um engenheiro com créditos firmados. Que é um engenheiro competente e idóneo. Principalmente na área de obras públicas. Por isso mesmo, terá sido nomeado pela recém criada Ordem de que é membro. Ordem que, ao que parece, começa mal a sua actividade, Ordem que começa mal quando é chamada a dar parecer técnico. Puramente técnico. Ao que parece, até prova em contrário, na Ordem dos Engenheiros também há quem tenha medo da verdade. Porquê? Será que verdade também incomoda os engenheiros moçambicanos? Se assim é, se assim for, resta-lhes uma única solução: Demitam-se.



sábado, março 06, 2004

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo
6 de Março 2004

antes e depois

Luís David


Para ver se dizem menos disparates



Há, efectivamente, várias formas de fazer jornalismo. De estar no jornalismo. De entre essas tantas, uma passa pela investigação, pela pesquisa. Por fazer aquilo a que costuma chamar-se de trabalho de campo. Outra, menos trabalhosa mas menos aliciante, é a do jornalismo preguiçoso. Do jornalismo papagaio. O patrão diz e o papagaio repete, com inaudita fidelidade, o que lhe ordenam dizer. É só perorar. Depois recebe a gorjeta, recebe ração melhorada. E, esta forma de jornalismo, esta forma de estar no jornalismo, parece estar a conquistar alguns adeptos entre nós. É um jornalismo que, como alguém já reconheceu publicamente, foi muito praticado na União Soviética no tempo do Estalinismo. Mas, não só. Também o foi na Alemanha de Hitler. E, por aí em diante. Mesmo hoje, não é difícil de encontrar adeptos desta forma de jornalismo. Não é difícil encontrar quem nada tendo investigado negue as conclusões a que chegou quem se deu ao trabalho de investigar. E, para quê? Para tentar fazer passar os seus desejos por realidade, para tentar transformar o dogma em verdade. Porque à boa maneira de Estaline e de Hitler, acredita que uma mentira muitas vezes repetida pode transformar-se em verdade. Cai, porém, em erro larvar quem assim hoje pensa. Porque nada é, ou volta a ser como foi.

A denúncia de tráfico de órgãos humanos e de crianças na província de Nampula continua a ser notícia. Não só aqui, não só em Moçambique, como em diversos outros países. Acredita-se que não fumo sem fogo. Que não pode haver fumo sem fogo. Mesmo quando os resultados da investigação oficial são tudo menos conclusivos. Mesmo quando esse resultados procurem ser mais tranquilizadores do que realistas. E, talvez por isso, ou em função disso, aí está um comunicado dos religiosos daquela província. Um documento extenso e preocupante que deve merecer a atenção de quem tem por dever procurar a verdade. Um documento com factos, datas e nomes. Um documento que tem a validade que tem. Mas que não pode, de forma nenhuma, ser ignorado. Sobretudo, que não nos permite afirmar que não há vítimas, que não há nomes de vítimas. Que tudo isto de tráfico de órgãos humanos não passa de uma cabala. Como continua a afirmar o papagaio de serviço. A quem foi prometida ração melhorada. Felizmente que o papagaio não sabe ler. Acaso soubesse, a esta hora estaria mudo de vergonha. Por só saber repetir, insistentemente, disparates. Mas, também e principalmente por não saber ler. De facto, a solução parece estar em ensinar os papagaios a ler. Para ver se dizem menos disparates.