quinta-feira, outubro 26, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Outubro 22, 2006


antes e depois

Luís David


saber entender e interpretar

Com prefácio da edição portuguesa assinado pelo Padre Vítor Melícias, “O Fim da Pobreza – como consegui-lo na nossa geração”, teve a sua segunda edição em Junho passado. Ao longo de mais de 500 páginas, Jeffrey Sachs, conselheiro do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, dá-nos a conhecer a sua experiência de mais de vinte anos, em diferentes países do mundo. Da Bolívia à Polónia, da Rússia à China, da Índia ao Quénia. Naturalmente, África merece espaço especial e, logo na pag. 17, o autor escreve: Em particular, gostaria de agradecer à nova geração africana de líderes democráticos que vão apontando o caminho a seguir, e que inclui o anterior Presidente Alberto Chissano de Moçambique (...).Ao referir-se à situação na Rússia, em meados da década passada, escreve Jeffrey Sachs (pag. 222): No final da década (de 90), o optimismo tinha desaparecido, e os Russos estavam novamente à procura de um líder forte com poder centralizado. Quando os reformadores não conseguiram a ajuda de que necessitavam, eram substituídos por cinzentos apparatchiks corruptos e mercenários.][O pior ocorreu em 1995 e 1996, época em que eu observava da bancada. Durante aqueles dois anos, as privatizações tornaram-se uma actividade desavergonhada e criminosa. Em resumo, um grupo corrupto de denominados homens de negócios, que mais tarde vieram a ser colectivamente conhecidos como os novos oligarcas da Rússia, conseguiram deitar as mãos a dezenas de milhares de milhões de dólares de riqueza sob a forma de recursos naturais, principalmente nos conglomerados de petróleo e gás do estado russo. As melhores estimativas são de cerca de 100.000 milhões de dólares de petróleo, gás e outras matérias-primas valiosas transferidas para mãos privadas em troca de talvez não mais de 1.000 milhões de dólares de receitas de privatização recebidas pelo Tesouro. Criaram-se bilionários da noite para o dia: os orgulhosos (e novos ricos) proprietários da indústria russa de petróleo e gás.][ Quando o simulacro processo de privatização foi anunciado, através de um esquema pouco transparente de troca de acções por empréstimos, no qual os insiders conseguiam acesso às acções de uma empresa em troca de empréstimos do estado, tentei avisar os governos dos (...).][ O ocidente deixou isto acontecer sem um murmúrio.

Acabam de ser assinalados os vinte anos da morte de Samora Machel. Apontado como exemplo de honestidade, de verticalidade, de frontalidade. De homem íntegro, de defensor da ética do Estado, de valores morais irrepreensíveis. Hoje, á distância de vinte anos pode ouvir-se com frequência que “se Samora fosse vivo, nada disto acontecia”. A frase, em si própria, tanto pode ser interpretada como um elogio como uma crítica. Tanto pode significar saudade e respeito como sentimento patológico. Digamos que a frase, tantas vezes pronunciada nos últimos tempos, reflecte respeito e admiração por Samora. Talvez saudade do gesto, da palavra e da acção do homem Samora. Mas, pode, igualmente, ter leituras e interpretações diferentes. Depende de quem pronuncia. Depende de quem afirma. Cabe a cada um saber entender e interpretar.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Outubro 15, 2006

antes e depois

Luís David


a situação preocupa


O tempo a que me refiro, é o tempo presente. É o tempo actual. É o de hoje. O espaço, o espaço é o da cidade de Maputo. E de suas periferias. De suas várias e múltiplas periferias. Ora, é neste tempo e neste espaço, neste tempo presente e neste espaço bem delimitado, que começa a ser difícil viver. Talvez e melhor, sobreviver ou continuar vivo. Quando se é honesto, quando se é cidadão honesto. E, neste como em todos os casos e situações similares, semelhantes, iguais, ser não é parecer. Ser é, exactamente, significa exactamente, ser. Porque o crime violento, o assalto com arma de fogo, está a aumentar. Está a crescer. De forma alarmante. O cidadão. Qualquer cidadão, hoje, na cidade de Maputo, corre o risco de sentir apontada uma arma de fogo à cabeça. Para lhe roubarem carro e bens pessoais. Depois, depois, procede como qualquer cidadão honesto pensa ser correcto proceder. Comunica a ocorrência à esquadra de polícia mais próxima. E, aí, a partir daí, começa o calvário, tem início o martírio. Um doloroso percurso. É que o início da investigação parece, ao cidadão honesto, estar a ser retardado. Que o processo está a demorar mais tempo que o necessário, que o justificável para chegar ao investigador. Cinco dias depois de ser roubado com uma arma apontada à cabeça, o cidadão honesto fica a saber que, sequer, a ocorrência foi comunicada aos postos fronteiriços. Para tentar evitar a saída da viatura do país. Sequer, à Interpol. Mais, que nessa tarde de sexta-feira não já não há ninguém para receber mensagens do lado de lá da fronteira. Logo, qualquer comunicação às Polícias dos países vizinhos só será feita segunda-feira seguinte. Naturalmente, e sem qualquer ofensa aos cidadãos honesto deste país, a questão que, obrigatoriamente, tem de ser colocada é se este comportamento pode ser enquadrado no combate ao crime ou ser visto como colaboração com o criminoso. Sem que se pretenda tirar conclusões precipitadas, parece poder concluir-se que, em certos casos, haverá alguma promiscuidade entre polícia e ladrão. Ou, então, concedendo o benefício da dúvida, as nossas polícias estão, ainda, amarradas a processos burocráticos tão antiquados, que só ao ladrão beneficiam.


De quando em quando, de quando em vez, de tempos em tempos, perante a pressão da opinião pública e dos roubados, dos baleados e dos assassinados, surge reacção. Infelizmente, e sem possibilidade de desmentido, apenas a nível de discurso político. Como foi o caso desta semana. Quem leu a primeira página do jornal “Notícias” da última sexta-feira, ficou informado que os “Comandantes da PRM prometem repor a ordem”. Isto na zona sul do país. Logo, se prometem repor a ordem, significa que neste momento não há não existe ordem. E, na verdade não existe. Mais, que são os próprios comandantes a reconhecer que não existe ordem. Aliás, as primeiras linhas da referida notícia são claras e elucidativas: A onda de criminalidade que nos tempos que correm ganhou contornos alarmantes, com a ocorrência de crimes violentos, nomeadamente com recurso a armas de fogo, poderá reduzir nos próximos tempos, com a concretização de acções coordenadas entre as unidades policiais estacionadas nas três províncias da região sul do país, incluindo a cidade de Maputo. Acrescenta a notícia que Esta promessa foi feita por Luís Magueza, novo comandante da PRM na capital, durante os trabalhos da sexta reunião dos governadores do sul, realizada esta semana na Namaacha. Ora, salvo melhor opinião, o que nós, o que todos nós queremos, como cidadãos honestos, pagadores de impostos, é bem mais do que promessas. É algo vá para além do discurso político. O que queremos, o que temos o direito de exigir é acção. E, perante a realidade que se vive na capital do país, o que queremos é que, se necessário, o senhor comandante vista o seu colete à prova de bala e dirija pessoalmente operações contra criminosos. A não ser assim, corremos o risco de ver aumentar o número de linchamentos. Até de inocentes. Como pode já estar a acontecer. Com toda a responsabilidade, no mínimo moral, das autoridades policiais. E, quando acontecem linchamentos, quando se sucedem os casos de justiça pelas próprias mãos, podemos estar a caminhar para uma situação sem retorno. Desejamos que não. É que a etapa seguinte, é o poder cair na rua. Mesmo que não, mesmo que o discurso político possa tentar ser tranquilizante, tranquilizador, a situação preocupa.
Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Outubro 8, 2006

antes e depois

Luís David


libertar Cahora Bassa dos colonialistas


No fecho dos seus serviços noticiosos, está a TVM a apresentar pequenos excertos de intervenções públicas de Samora Machel. Intervenções feitas nos mais diversos contextos, ao longo do tempo, e que surgem, agora, por ocasião da passagem dos vinte anos da sua morte. Foi assim que, num destes últimos dias, vimos e ouvimos Samora Machel a falar em Lisboa. Aquando da sua primeira visita a Portugal. Era, na altura, Presidente da antiga potência colonizadora o General Ramalho Eanes. Ao que a memória nos recorda, o único Presidente de Portugal que visitou, até hoje, Moçambique independente. E que teve uma recepção apoteótica. Curiosamente, ou talvez não, constituiu tema de conversa de Samora com jornalistas portugueses, em Lisboa, nessa sua visita, a situação de Cahora Bassa. Defendeu Samora, como parece óbvio que o tenha feito, a reversão da barragem para a posse de Moçambique. E, explicou, na ocasião, de forma didáctica e pedagógica, os motivos pelos quais os prejuízos acumulados por Portugal com a gestão de Cahora Bassa eram da inteira responsabilidade de Portugal. Explicou, detalhou, também, os motivos pelos quais não cabia a Moçambique qualquer responsabilidade pelo facto de a energia produzida em Cahora Bassa não estar a chegar, não poder estar a ser vendida, aos seus potenciais compradores. Se os jornalistas que conversaram, nesse dia, com Samora Machel entenderam ou não a sua mensagem, é uma incógnita. Que o Governo de Portugal não entendeu a mensagem, é uma realidade. Foi uma realidade há mais de vinte anos, como a é hoje.


Não tem, obviamente, este breve apontamento por objectivo falar de Samora Machel. Tem, isso sim, mostrar, talvez demonstrar sem dificuldades nenhuma, que a reversão de Cahora Bassa para Moçambique é uma questão de interesse nacional, é uma questão de soberania, é uma questão de Estado, que, desde sempre, tem vindo a ser colocada. Que é colocada desde 25 de Junho de 1975. Nunca terá sido, ao que se sabe, e muito pelo contrário, diferente a posição de Joaquim Chissano enquanto Chefe do Estado. Não o é, igualmente, o posicionamento de Armando Guebuza, como actual Presidente da República. Para resumir e concluir, podemos afirmar que, nestas últimas três décadas, tem sido manifesto o empenho de Moçambique em fazer reverter para a sua soberania a mais colossal obra, talvez o símbolo último, do colonialismo português em terras africanas. Também, e porque não, da ditadura e do fascismo português. O estranho, o mais estranho, é que, hoje, homens que se dizem democratas e socialistas, que tem o poder que pensam ter, comunguem e estejam perfilados ao lado de António de Oliveira Salazar e de Marcelo Caetano. Como o tem estado, aliás, durante estas últimas três décadas. E como, estoicamente, lutam por permanecer, por continuar em estar. E que pretendem, como é público, continuar a ditar ordens para as antigas colónias a partir do Terreiro do Paço, em Lisboa. Sabemos todos, que aqui aportaram, nestas terras índicas, em tempos coloniais republicanos, Américo Tomás e Marcelo Caetano. Depois, derrubado que foi o colonialismo, apenas um Presidente veio. Ramalho Eanes. Fica, naturalmente, e por direito próprio, neste espaço, uma palavra em memória de Sá Carneiro. Pelo que fez e pelo muito que poderia ter feito no que respeita à normalização das relações entre os dois países. Entre os dois Estados. Sem recalques nem complexos racistas. Depois, hoje, agora, parece só restar que Cavaco Silva esteja na disposição de redimir os erros dos seus antecessores. Os erros de um passado recente. E, talvez, até, voltar a visitar Moçambique. Para, definitivamente, libertar Cahora Bassa dos colonialistas.
Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Outubro 1, 2006

antes e depois

Luís David


o retorno à “política da canhoeira”


Há, naturalmente, diferentes formas, diferentes maneiras de estar na vida. Como na política. Uma, é ser sério e honesto, respeitador e cumpridor das normas e das regras que regulam as relações entre os homens e entre os homens e a sociedade. No seu todo. Em resumo, cumprir com os compromissos assumidos, quer sejam escritos ou verbais. Como se entende, muito do que coloca para um bom entendimento e um bom relacionamento entre cidadãos, é válido para um bom entendimento e um bom relacionamento entre Estados. Entre homens que representam Estados. Entre homens que têm poder para assinar compromissos entre Estados, compromissos que comprometem e obrigam Estados. Ora, a outra forma de estar na vida como na política, entre várias formas possíveis, situa-se no campo inverso. Logo, significa não ser sério nem honesto, não ser respeitador das normas e das regras que regulam as relações entre os homens e entre os homens e a sociedade. Também, não cumprir com compromissos assumidos, quer sejam escritos ou verbais. Quer dizer, não respeitar nada nem ninguém. Impor a sua vontade recorrendo, se para tanto for necessário ao subterfúgio, quando não à mentira. Para, repita-se, não cumprir com a palavra dada. Ora, se esta atitude, se este tipo de comportamento é mau no relacionamento entre homens, dentro de uma determinada sociedade, parece pior no relacionamento entre Estados. Em tempo não muito distantes, mas durante décadas, talvez séculos, a esta forma de impor a vontade de um à vontade do outro, houve quem chamasse de “política da canhoeira”. Em nada fica mal recordar o passado histórico, para entender o presente e ponderar o futuro.


A posição do actual Governo de Portugal, sobre o entendimento a que chegou com o Governo de Moçambique, relativamente a Cahora Bassa é, no mínimo, uma posição que causa muitas preocupações. De facto, é verdade, nunca nenhum anterior Governo de Portugal assinou o que quer que fosse. E, não tendo assinado assumiu compromisso nenhum. Mas, este Governo assinou. E, ao assinar assumiu um compromisso. E, um compromisso entre Estados. Não estamos, como todos sabemos, a falar de compromissos assinados em décadas passadas. Entre outros Governos que representavam os mesmos Estados. Estamos a falar de compromissos assinados a 2 de Novembro de 2005. Ao mais alto nível. Entre governantes, de um e de outro Estado, que estavam e permanecem no poder. Ora, hoje, quase um ano após, quase um ano depois de assumido o compromisso, por escrito, uma das partes utiliza os mais patéticos subterfúgios para não cumprir aquilo que assumiu como sendo seu dever, como dever próprio, cumprir. Mas, esta falta de seriedade, esta falta de honestidade, parece ir mais longe, Vai, mesmo mais longe. É que, até ao momento, estão por explicar os motivos que levaram o Primeiro-Ministro de Portugal a não se ter encontrado com o Presidente da República de Moçambique. Na cidade de Nova Iorque. Por ocasião da Assembleia Geral da ONU. Admitamos que não foi por falta de respeito. Motivos ponderosos e, certamente, de Estado, terão sido soberanos na decisão. A questão está em saber quais, que conclusões tirar deste desencontro e que consequências daí poderão resultar. Para as relações entre os dois Estados. Por certo, ninguém de bom senso admite que se esteja perante o retorno à “política da canhoeira”.