domingo, novembro 26, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Novembro 26, 2006

antes e depois

Luís David


há interesses e há interesses

Há trinta anos, Moçambique produzia e imprimia o livro escolar. As primeiras centenas de milhar de exemplares foram impressas na rotativa da Tempográfica. Que, pouco anos após, viria necessitar de uma grande reparação. Ao que se dizia na época, principalmente devido à fraca qualidade do papel. Então, importado do Brasil. Em paralelo, ao que a memória recorda, foram sendo criadas condições para a criação do CEGRAF. Concluídas as obras e montado o equipamento, moderno na época, faltavam técnicos e operários. A solução foi encontrada, mais uma vez, recorrendo à Tempográfica. Que se viu, assim, privada dos seus operários mais experientes e mais competentes. Durante muitos anos, foi o livro escolar moçambicano impresso, na sua totalidade, em Moçambique. Naturalmente, o posterior crescimento gradual da rede escolar e do número de alunos veio criar novas exigências. Que começaram por ultrapassar a capacidade de impressão existente no país. Logo, tornou-se necessário procurar e encontrar soluções alternativas. Tornou-se forçoso recorrer a gráficas em diferentes países. E, se o desejado aumento de quantidade foi conseguido com relativa facilidade, nem tudo correu pelo melhor nos primeiros anos. É que, em termos de qualidade registou-se um abaixamento significativo. E que ia desde legendas de imagens trocadas a erros de ortografia. Situações que, ao que parece, o tempo também terá corrigido.


Durante um longo período de tempo, o investimento na indústria gráfica nacional foi quase nenhum. Ou, mesmo nenhum. O que significa que o parque gráfico nacional existente foi caminhando, lenta mas inevitavelmente, para uma quase total degradação. Moçambique perdia, desta forma, a capacidade de produzir artigos de qualidade. Em favor de empresas de países vizinhos e, até, de mais longe. De outros continentes. A partir de determinado momento, porém, a situação começou a conhecer um movimento inverso. Daí que hoje, de novo, se volte a ouvir falar em imprimir o livro escolar no país. Pelo menos, uma parte das necessidades. E, neste contexto, é de louvar, sem reservas, a posição assumida pelo Ministério da Educação e Cultura. A possibilidade que está a criar para que as gráficas nacionais existentes possam candidatar-se à impressão do livro escolar. Ou que outras se venham a instalar com idêntica finalidade. De resto, hoje, faz pouco sentido que, como norma, o livro escolar seja impresso, ano após ano, no estrangeiro. Afigura-se, para além de lógico, como normal e necessário que se comece a inverter a situação. Pode acontecer, e está a acontecer pelo que tem vindo a público, que alterações de normas e de procedimentos estão a produzir receios e reacções. Mas, como todos sabemos, mudanças provocam sempre resistências. Por certo, através do diálogo, será possível acomodar os interesses e os direitos de todos os intervenientes no processo. Contudo, o que não parece correcto nem admissível é recuar perante o objectivo traçado. Até porque há interesses e há interesses.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Novembro 19, 2006

antes e depois

Luís David


agir perante a nossa realidade concreta

É, nos seus aspectos mais visíveis, a sociedade moçambicana uma sociedade extremamente complexa. E, cheia de curiosidades e de particularidades. Que para além da complexidade comum a outras ou a todas as sociedades, parece ter curiosidades e particularidades próprias. Digamos, inéditas ou exclusivas. Mas cuja repetição, cuja banalização tende ou pode transformar-se em hábito. Em norma, em normalidade. O que se afigura perigoso quando o precedente tende a ser a regra ou o rotina. Ora, anormal e inédita foi a cena ocorrida numa das artérias da Baixa da cidade de Maputo. Na última sexta-feira. Pelo que pudemos ver através da imagens da televisão. Aconteceu, então, uma senhora que transportava diversos, géneros alimentares, entre os quais óleo de cozinha, ser interceptada por agentes da Polícia. Suspeitando, certamente, os polícias de giro estarem perante perigosa ladra, daí a algemarem-na terá sido questão de segundos. Só que a suspeita parece não ser pessoa para se dar por vencida com facilidade. Vai daí, agarrou o polícia, ao qual estava ligada pela corrente da algema, pela camisa. E, como que numa aparente promessa de não o querer largar, justificou a sua atitude. Falou sobre a falta de identificação do agente em causa e, disse mais. Disse, para a quem a quis ouvir, não ter qualquer problema em deslocar-se à Esquadra, quando transportada em viatura da Polícia, conduzida por polícias devidamente identificados. O que parece ter acontecido. Depois, o que se possa ter passado depois, terão sido apenas detalhes. O que nada podem vir a alterar o fundamental da história.


O número de crimes violentos ocorridos nos últimos dias continua extremamente alto. Principalmente no que se refere a roubos de viaturas e assaltos a residências. O assassinato, também com armas de fogo, de agentes da chamada “brigada mamba”, elevou o número de vítimas para cinco. Havemos de convir, todos, que é muito agente da polícia morto num curto espaço de tempo. Felizmente, a fase dos linchamentos, a fase da “justiça pelas próprias mãos”, parece ter passado. Esperemos que em definitivo. No geral, o cenário, aquilo de que nos apercebemos, pode ser completado com o aparecimento, também nas televisões, da Polícia Comunitária. Uma Polícia que, salvo melhor entender ou outra explicação, parece mais preocupada em evitar o linchamento de possíveis ladrões do que em evitar o roubo e o crime. Trata-se, até prova em contrário, de uma Polícia com pouca ou nenhuma capacidade de intervenção na protecção dos cidadãos. E, no mínimo, uma Polícia com uma actuação algo controversa. O que, em última análise, pode conduzir a uma perda de confiança na sua actuação. Aqui chegados, muitas são as questões que poderiam ser colocadas. Uma, é a de saber o que fazem, a que comando obedecem ou a quem protegem esses agentes que, desarmados, percorrem as artérias de Maputo. Naturalmente, só e apenas enquanto somos iluminados pelo Sol. Outra questão que pode, e deve, ser colocada, não é de saber quantos carros roubados foram recuperados mas, isso sim, quantos ladrões de carros foram presos. Quem são e onde estão presos. Se é que algum está. Por fim, e esta parece ser uma questão muito mais complicada e complexa, importa saber se existe ou não “espírito de corpo” na Polícia. Aqui, em última instância, estamos perante uma questão doutrinária. Se sim, tudo bem. Que haja manifestações de solidariedade para com os colegas assassinados. Que todos se empenham em descobrir quem assassinou os colegas. Se não, a solução possível, no mínimo plausível, é militarizar a Polícia. E, militarizar a Polícia, na nossa realidade, actual, significa tomar a ofensiva no combate ao criminoso. Significa persuadir e intimidar. Significa ocupar o espaço onde hoje actua, impune, o criminoso. Significa fazer circular o blindado onde, todos o sabemos, circula, impune, agora, o carro do ladrão e do assassino armado. De facto, e esta é a realidade, não temos muito espaço para podermos ser diferentes. Temos de saber e querer agir perante a nossa realidade concreta.

domingo, novembro 12, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Novembro 12, 2006

antes e depois

Luís David


os limites do real e da verdade

De seu nome José Rodrigues dos Santos, nasceu na cidade da Beira, em Moçambique, no ano de 1964, onde viveu os primeiros dez anos da sua vida. Iniciou a sua carreira jornalística na Rádio Macau. Trabalhou na BBC, em Londres, entre 1987 e 1990, donde seguiu para a RTP onde começou a apresentar o 24 Horas. Em 1991 passou para a apresentação do Telejornal e tornou-se colaborador permanente da CNN. Doutorado em Ciências da Comunicação e professor universitário, foi por duas vezes director de informação da RTP. Galardoado com vários prémios profissionais e académico, é autor de diversos livros, o mais recente dos quais “A Verdade da Guerra” (258 páginas), que conheceu a sua sexta edição em 2005. Sobre este livro, escreveu Manuel Maria Carrilho, que foi Ministro da Cultura de Portugal, em o “Diário de Notícias”: Rodrigues dos Santos assumiu uma posição rara mas certeira – a da rejeição da noção de objectividade no jornalismo, abrindo assim caminho a duas ideias importantes: a da cumplicidade dos jornalistas com a encenação dos factos [...] e a do condicionamento de tudo o que um jornalista diz pela sua particular perspectiva. Num tempo e num espaço em que tanto se fala sobre independência e manipulação da informação, sobre pressões e objectividade, faz bem ler um livro como a “Verdade da Guerra”.


Numa longa mas não fastidiosa abordagem, digamos, mesmo, uma história do jornalismo de guerra, que vai da Primeira Guerra Mundial até a “As guerras do século XXI”, Rodrigues dos Santos escreve, logo no primeiro capítulo, (pag. 37): [...] O conceito de que tudo no universo é relativo veio dar credibilidade ao relativismo, que defende que a verdade varia consoante o seu enunciador, enquanto o princípio da incerteza reforçou o subjectivismo, que preconiza o primado do sujeito na concepção do objecto. Se as coisas não são o que parecem, como demonstra a teoria da relatividade, e se o princípio de causa-efeito não é fenomenologicamente universal, como revela e mecânica quântica, para quê então insistir nessas ilusões?. E, ainda sobre o acesso ao real, escreve na página seguinte: [...] É que, ao abrir espaço para o acaso, a imprevisibilidade e o aleatório fenomenológico no estudo do comportamento da matéria, o princípio da incerteza permitiu perceber que o observador altera sempre o objecto observado, o que significa, consequentemente, que não existem observações objectivas da realidade. Mais adiante, (pag. 45), o autor cita David Krech e Richard Crutchfield que em 1948 estabeleceram o conceito de que a percepção é funcionalmente selectiva, o que significa que existe um elevado grau de distorção na forma como apreendemos as manifestações do real. “Ninguém capta tudo o que existe ‘lá fora’. Já no capítulo seguinte, “A objectividade do discurso jornalístico”, escreve (pag. 56): Muitos jornalistas consideram que a objectividade está para além das ideologias, quando na verdade, a crença na objectividade é, ela própria, de raiz ideológica. [...] A ingenuidade parte do facto de se acreditar que a objectividade é possível, quando, na verdade, o problema é que ela é inatingível, a começar pela subjectividade inerente ao discurso e aos seus valores intrínsecos. Em resumo, e por o espaço também ser pouco, pode concluir-se que estamos perante uma obra de interesse para todos os estudantes da área da comunicação social. Embora nem só. E que, numa perspectiva mais ampla, mais alargada, bem pode servir de base para um debate sobre os limites do real e da verdade.

domingo, novembro 05, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Novembro 5, 2006

antes e depois

Luís David

uma realidade que não pode ser escamoteada

O fenómeno dos linchamentos, principalmente em Maputo, está a gerar vários movimentos. Por um lado, de condenação. Como era de esperar e é de desejar. Por outro lado, de análise e de tentativa de interpretação e de compreensão das suas causas mais profundas. Que, muito provavelmente, serão várias e diversas. E, aqui, parece redundante afirmar ser importante escutar e ler o que especialistas na matéria dizem e escrevem. Mesmo quando não se concorde com as suas opiniões. Mas, é importante saber, conhecer, que medidas apontam para combater as causas do fenómeno. E ter presente, sobretudo, que não bastam, apenas, medidas punitivas contra os linchadores. Estas, em última instância, tem apenas efeitos sobre casos já passados, já ocorridos. E, parece necessário ir mais além. Para prevenir e evitar.
De Francis Fukuyama, lemos, recentemente, “A Terceira Vaga” e “O Fim da História”. Agora chega-nos “A Construção de Estados – Governação e Ordem Mundial no Século XX!”. Desta última obra se diz que o autor sistematiza o que sabemos – e, sobretudo, o que não sabemos – sobre como criar instituições públicas bem-sucedidas em países em vias de desenvolvimento, de forma que estas beneficiem os seus cidadãos. Logo no início do livro (pag. 16), Fukuyama afirma que Os Estados modernos (...) são tudo menos universais. Não existiram de todo em vastas regiões do mundo, como é o caso da África subsariana antes do colonialismo europeu. Após a Segunda Guerra Mundial a descolonização conduziu a um frenesim de construção de Estados por todo o mundo em vias de desenvolvimento, que foi bem sucedida em países como a Índia e a China, mas que apenas teve lugar no plano formal em muitas outras partes da África, Ásia e Médio Oriente. Mais adiante (pag19), questiona se os Estados Unidos têm um Estado forte ou fraco. E, depois de explicar o processo de construção do Estado norte-americano, escreve: Por outro lado, o Estado americano pode ser considerado muito forte noutro sentido. Max Weber (1946) definiu o Estado como “uma comunidade humana que (com êxito) reclama o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”. A essência do Estado é, por outras palavras, a coacção: A capacidade fundamental de colocar alguém no terreno com um uniforme e uma arma para forçar as pessoas a cumprir as leis do Estado. Neste aspecto, o Estado americano é extraordinariamente forte: possui uma enorme variedade de meios de coacção a nível federal, estadual e local, para fazer cumprir tudo, desde regras de trânsito ao direito comercial, ou para evitar as violações fundamentais dos direitos dos cidadãos. (...) Voltando à questão inicial dos linchamentos, talvez se possa concluir que constituem um exemplo de Estado fraco. Não o único, infelizmente. Mas que constitui uma realidade que deve ser tida em conta na análise global do fenómeno. Que é uma realidade que não pode ser escamoteada.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Outubro 22, 2006


antes e depois

Luís David


saber entender e interpretar

Com prefácio da edição portuguesa assinado pelo Padre Vítor Melícias, “O Fim da Pobreza – como consegui-lo na nossa geração”, teve a sua segunda edição em Junho passado. Ao longo de mais de 500 páginas, Jeffrey Sachs, conselheiro do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, dá-nos a conhecer a sua experiência de mais de vinte anos, em diferentes países do mundo. Da Bolívia à Polónia, da Rússia à China, da Índia ao Quénia. Naturalmente, África merece espaço especial e, logo na pag. 17, o autor escreve: Em particular, gostaria de agradecer à nova geração africana de líderes democráticos que vão apontando o caminho a seguir, e que inclui o anterior Presidente Alberto Chissano de Moçambique (...).Ao referir-se à situação na Rússia, em meados da década passada, escreve Jeffrey Sachs (pag. 222): No final da década (de 90), o optimismo tinha desaparecido, e os Russos estavam novamente à procura de um líder forte com poder centralizado. Quando os reformadores não conseguiram a ajuda de que necessitavam, eram substituídos por cinzentos apparatchiks corruptos e mercenários.][O pior ocorreu em 1995 e 1996, época em que eu observava da bancada. Durante aqueles dois anos, as privatizações tornaram-se uma actividade desavergonhada e criminosa. Em resumo, um grupo corrupto de denominados homens de negócios, que mais tarde vieram a ser colectivamente conhecidos como os novos oligarcas da Rússia, conseguiram deitar as mãos a dezenas de milhares de milhões de dólares de riqueza sob a forma de recursos naturais, principalmente nos conglomerados de petróleo e gás do estado russo. As melhores estimativas são de cerca de 100.000 milhões de dólares de petróleo, gás e outras matérias-primas valiosas transferidas para mãos privadas em troca de talvez não mais de 1.000 milhões de dólares de receitas de privatização recebidas pelo Tesouro. Criaram-se bilionários da noite para o dia: os orgulhosos (e novos ricos) proprietários da indústria russa de petróleo e gás.][ Quando o simulacro processo de privatização foi anunciado, através de um esquema pouco transparente de troca de acções por empréstimos, no qual os insiders conseguiam acesso às acções de uma empresa em troca de empréstimos do estado, tentei avisar os governos dos (...).][ O ocidente deixou isto acontecer sem um murmúrio.

Acabam de ser assinalados os vinte anos da morte de Samora Machel. Apontado como exemplo de honestidade, de verticalidade, de frontalidade. De homem íntegro, de defensor da ética do Estado, de valores morais irrepreensíveis. Hoje, á distância de vinte anos pode ouvir-se com frequência que “se Samora fosse vivo, nada disto acontecia”. A frase, em si própria, tanto pode ser interpretada como um elogio como uma crítica. Tanto pode significar saudade e respeito como sentimento patológico. Digamos que a frase, tantas vezes pronunciada nos últimos tempos, reflecte respeito e admiração por Samora. Talvez saudade do gesto, da palavra e da acção do homem Samora. Mas, pode, igualmente, ter leituras e interpretações diferentes. Depende de quem pronuncia. Depende de quem afirma. Cabe a cada um saber entender e interpretar.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Outubro 15, 2006

antes e depois

Luís David


a situação preocupa


O tempo a que me refiro, é o tempo presente. É o tempo actual. É o de hoje. O espaço, o espaço é o da cidade de Maputo. E de suas periferias. De suas várias e múltiplas periferias. Ora, é neste tempo e neste espaço, neste tempo presente e neste espaço bem delimitado, que começa a ser difícil viver. Talvez e melhor, sobreviver ou continuar vivo. Quando se é honesto, quando se é cidadão honesto. E, neste como em todos os casos e situações similares, semelhantes, iguais, ser não é parecer. Ser é, exactamente, significa exactamente, ser. Porque o crime violento, o assalto com arma de fogo, está a aumentar. Está a crescer. De forma alarmante. O cidadão. Qualquer cidadão, hoje, na cidade de Maputo, corre o risco de sentir apontada uma arma de fogo à cabeça. Para lhe roubarem carro e bens pessoais. Depois, depois, procede como qualquer cidadão honesto pensa ser correcto proceder. Comunica a ocorrência à esquadra de polícia mais próxima. E, aí, a partir daí, começa o calvário, tem início o martírio. Um doloroso percurso. É que o início da investigação parece, ao cidadão honesto, estar a ser retardado. Que o processo está a demorar mais tempo que o necessário, que o justificável para chegar ao investigador. Cinco dias depois de ser roubado com uma arma apontada à cabeça, o cidadão honesto fica a saber que, sequer, a ocorrência foi comunicada aos postos fronteiriços. Para tentar evitar a saída da viatura do país. Sequer, à Interpol. Mais, que nessa tarde de sexta-feira não já não há ninguém para receber mensagens do lado de lá da fronteira. Logo, qualquer comunicação às Polícias dos países vizinhos só será feita segunda-feira seguinte. Naturalmente, e sem qualquer ofensa aos cidadãos honesto deste país, a questão que, obrigatoriamente, tem de ser colocada é se este comportamento pode ser enquadrado no combate ao crime ou ser visto como colaboração com o criminoso. Sem que se pretenda tirar conclusões precipitadas, parece poder concluir-se que, em certos casos, haverá alguma promiscuidade entre polícia e ladrão. Ou, então, concedendo o benefício da dúvida, as nossas polícias estão, ainda, amarradas a processos burocráticos tão antiquados, que só ao ladrão beneficiam.


De quando em quando, de quando em vez, de tempos em tempos, perante a pressão da opinião pública e dos roubados, dos baleados e dos assassinados, surge reacção. Infelizmente, e sem possibilidade de desmentido, apenas a nível de discurso político. Como foi o caso desta semana. Quem leu a primeira página do jornal “Notícias” da última sexta-feira, ficou informado que os “Comandantes da PRM prometem repor a ordem”. Isto na zona sul do país. Logo, se prometem repor a ordem, significa que neste momento não há não existe ordem. E, na verdade não existe. Mais, que são os próprios comandantes a reconhecer que não existe ordem. Aliás, as primeiras linhas da referida notícia são claras e elucidativas: A onda de criminalidade que nos tempos que correm ganhou contornos alarmantes, com a ocorrência de crimes violentos, nomeadamente com recurso a armas de fogo, poderá reduzir nos próximos tempos, com a concretização de acções coordenadas entre as unidades policiais estacionadas nas três províncias da região sul do país, incluindo a cidade de Maputo. Acrescenta a notícia que Esta promessa foi feita por Luís Magueza, novo comandante da PRM na capital, durante os trabalhos da sexta reunião dos governadores do sul, realizada esta semana na Namaacha. Ora, salvo melhor opinião, o que nós, o que todos nós queremos, como cidadãos honestos, pagadores de impostos, é bem mais do que promessas. É algo vá para além do discurso político. O que queremos, o que temos o direito de exigir é acção. E, perante a realidade que se vive na capital do país, o que queremos é que, se necessário, o senhor comandante vista o seu colete à prova de bala e dirija pessoalmente operações contra criminosos. A não ser assim, corremos o risco de ver aumentar o número de linchamentos. Até de inocentes. Como pode já estar a acontecer. Com toda a responsabilidade, no mínimo moral, das autoridades policiais. E, quando acontecem linchamentos, quando se sucedem os casos de justiça pelas próprias mãos, podemos estar a caminhar para uma situação sem retorno. Desejamos que não. É que a etapa seguinte, é o poder cair na rua. Mesmo que não, mesmo que o discurso político possa tentar ser tranquilizante, tranquilizador, a situação preocupa.
Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Outubro 8, 2006

antes e depois

Luís David


libertar Cahora Bassa dos colonialistas


No fecho dos seus serviços noticiosos, está a TVM a apresentar pequenos excertos de intervenções públicas de Samora Machel. Intervenções feitas nos mais diversos contextos, ao longo do tempo, e que surgem, agora, por ocasião da passagem dos vinte anos da sua morte. Foi assim que, num destes últimos dias, vimos e ouvimos Samora Machel a falar em Lisboa. Aquando da sua primeira visita a Portugal. Era, na altura, Presidente da antiga potência colonizadora o General Ramalho Eanes. Ao que a memória nos recorda, o único Presidente de Portugal que visitou, até hoje, Moçambique independente. E que teve uma recepção apoteótica. Curiosamente, ou talvez não, constituiu tema de conversa de Samora com jornalistas portugueses, em Lisboa, nessa sua visita, a situação de Cahora Bassa. Defendeu Samora, como parece óbvio que o tenha feito, a reversão da barragem para a posse de Moçambique. E, explicou, na ocasião, de forma didáctica e pedagógica, os motivos pelos quais os prejuízos acumulados por Portugal com a gestão de Cahora Bassa eram da inteira responsabilidade de Portugal. Explicou, detalhou, também, os motivos pelos quais não cabia a Moçambique qualquer responsabilidade pelo facto de a energia produzida em Cahora Bassa não estar a chegar, não poder estar a ser vendida, aos seus potenciais compradores. Se os jornalistas que conversaram, nesse dia, com Samora Machel entenderam ou não a sua mensagem, é uma incógnita. Que o Governo de Portugal não entendeu a mensagem, é uma realidade. Foi uma realidade há mais de vinte anos, como a é hoje.


Não tem, obviamente, este breve apontamento por objectivo falar de Samora Machel. Tem, isso sim, mostrar, talvez demonstrar sem dificuldades nenhuma, que a reversão de Cahora Bassa para Moçambique é uma questão de interesse nacional, é uma questão de soberania, é uma questão de Estado, que, desde sempre, tem vindo a ser colocada. Que é colocada desde 25 de Junho de 1975. Nunca terá sido, ao que se sabe, e muito pelo contrário, diferente a posição de Joaquim Chissano enquanto Chefe do Estado. Não o é, igualmente, o posicionamento de Armando Guebuza, como actual Presidente da República. Para resumir e concluir, podemos afirmar que, nestas últimas três décadas, tem sido manifesto o empenho de Moçambique em fazer reverter para a sua soberania a mais colossal obra, talvez o símbolo último, do colonialismo português em terras africanas. Também, e porque não, da ditadura e do fascismo português. O estranho, o mais estranho, é que, hoje, homens que se dizem democratas e socialistas, que tem o poder que pensam ter, comunguem e estejam perfilados ao lado de António de Oliveira Salazar e de Marcelo Caetano. Como o tem estado, aliás, durante estas últimas três décadas. E como, estoicamente, lutam por permanecer, por continuar em estar. E que pretendem, como é público, continuar a ditar ordens para as antigas colónias a partir do Terreiro do Paço, em Lisboa. Sabemos todos, que aqui aportaram, nestas terras índicas, em tempos coloniais republicanos, Américo Tomás e Marcelo Caetano. Depois, derrubado que foi o colonialismo, apenas um Presidente veio. Ramalho Eanes. Fica, naturalmente, e por direito próprio, neste espaço, uma palavra em memória de Sá Carneiro. Pelo que fez e pelo muito que poderia ter feito no que respeita à normalização das relações entre os dois países. Entre os dois Estados. Sem recalques nem complexos racistas. Depois, hoje, agora, parece só restar que Cavaco Silva esteja na disposição de redimir os erros dos seus antecessores. Os erros de um passado recente. E, talvez, até, voltar a visitar Moçambique. Para, definitivamente, libertar Cahora Bassa dos colonialistas.
Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Outubro 1, 2006

antes e depois

Luís David


o retorno à “política da canhoeira”


Há, naturalmente, diferentes formas, diferentes maneiras de estar na vida. Como na política. Uma, é ser sério e honesto, respeitador e cumpridor das normas e das regras que regulam as relações entre os homens e entre os homens e a sociedade. No seu todo. Em resumo, cumprir com os compromissos assumidos, quer sejam escritos ou verbais. Como se entende, muito do que coloca para um bom entendimento e um bom relacionamento entre cidadãos, é válido para um bom entendimento e um bom relacionamento entre Estados. Entre homens que representam Estados. Entre homens que têm poder para assinar compromissos entre Estados, compromissos que comprometem e obrigam Estados. Ora, a outra forma de estar na vida como na política, entre várias formas possíveis, situa-se no campo inverso. Logo, significa não ser sério nem honesto, não ser respeitador das normas e das regras que regulam as relações entre os homens e entre os homens e a sociedade. Também, não cumprir com compromissos assumidos, quer sejam escritos ou verbais. Quer dizer, não respeitar nada nem ninguém. Impor a sua vontade recorrendo, se para tanto for necessário ao subterfúgio, quando não à mentira. Para, repita-se, não cumprir com a palavra dada. Ora, se esta atitude, se este tipo de comportamento é mau no relacionamento entre homens, dentro de uma determinada sociedade, parece pior no relacionamento entre Estados. Em tempo não muito distantes, mas durante décadas, talvez séculos, a esta forma de impor a vontade de um à vontade do outro, houve quem chamasse de “política da canhoeira”. Em nada fica mal recordar o passado histórico, para entender o presente e ponderar o futuro.


A posição do actual Governo de Portugal, sobre o entendimento a que chegou com o Governo de Moçambique, relativamente a Cahora Bassa é, no mínimo, uma posição que causa muitas preocupações. De facto, é verdade, nunca nenhum anterior Governo de Portugal assinou o que quer que fosse. E, não tendo assinado assumiu compromisso nenhum. Mas, este Governo assinou. E, ao assinar assumiu um compromisso. E, um compromisso entre Estados. Não estamos, como todos sabemos, a falar de compromissos assinados em décadas passadas. Entre outros Governos que representavam os mesmos Estados. Estamos a falar de compromissos assinados a 2 de Novembro de 2005. Ao mais alto nível. Entre governantes, de um e de outro Estado, que estavam e permanecem no poder. Ora, hoje, quase um ano após, quase um ano depois de assumido o compromisso, por escrito, uma das partes utiliza os mais patéticos subterfúgios para não cumprir aquilo que assumiu como sendo seu dever, como dever próprio, cumprir. Mas, esta falta de seriedade, esta falta de honestidade, parece ir mais longe, Vai, mesmo mais longe. É que, até ao momento, estão por explicar os motivos que levaram o Primeiro-Ministro de Portugal a não se ter encontrado com o Presidente da República de Moçambique. Na cidade de Nova Iorque. Por ocasião da Assembleia Geral da ONU. Admitamos que não foi por falta de respeito. Motivos ponderosos e, certamente, de Estado, terão sido soberanos na decisão. A questão está em saber quais, que conclusões tirar deste desencontro e que consequências daí poderão resultar. Para as relações entre os dois Estados. Por certo, ninguém de bom senso admite que se esteja perante o retorno à “política da canhoeira”.

quinta-feira, setembro 28, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Setembro 24, 2006


antes e depois

Luís David



só o trabalho permite reduzir a pobreza


Sem que seja ainda prática corrente, já se registam gestos de solidariedade entre moçambicanos. Um pouco de todo o país, surgem notícias de apoio, de ajuda a necessitados. Uma ajuda que se destina a resolver situações pontuais. Contudo, pode muito bem reflectir, parece reflectir, alguma capacidade e desejo de minorar sofrimentos de quem nada tem. Nada possui. De tudo carece. Parece ser, e pode muito bem ser, o despertar de um sentimento que, certamente, pode ser ampliado. Que deve ser ampliado. Como iniciativa local e nacional. Como movimento de ajuda de moçambicanos a moçambicanos. Como movimento de carácter permanente. Enquadrado, dirigido, controlado por instituições ou associações existentes ou a criar. A quem os interessados possam fazer chegar, de forma regular e organizada, os seus donativos. A realidade recente mostra existir vontade de ajudar, mostra existir alguma capacidade interna para ajudar, mostra existir um sentimento de solidariedade latente. Que se revela e que se manifesta útil em situações pontuais. Mas que pode não estar a ser devidamente aproveitado. E que bem poderia ser incentivado e orientado para caminhos bem úteis. Como seja, por exemplo o apoio à velhice. Através da construção e apoio na manutenção de lares para idosos. Que, certamente, deixariam de ter necessidade de mendigar pelas artérias das principais cidades. Neste contexto, a criação de uma associação de amigos dos idosos pode não ser uma utopia. Pode ser uma realidade.


Os gestos de solidariedade tornados públicos até agora, são pessoais, pontuais e isolados. O que em nada tira mérito a quem pratica essas acções. Muito pelo contrário. Podem e devem ser apontados como exemplos a seguir. O que parece errado, o que parece abusivo, é que estejam, em alguns casos, a ser noticiados como exemplos de combate à pobreza. Não são nem nunca poderão ser exemplo de combate a nenhum tipo de pobreza. São, isso sim, ajuda. São apoios úteis e necessários para resolver situações pontuais e casos de necessidades pontuais. E, ainda bem que os resolvem. Bom seria, até, que mais houvessem. Que mais pessoas de predispusessem a apoiar outras pessoas em situação de carências extremas. Agora, teremos de ter algum cuidado quando pretendemos enquadrar gestos de solidariedade no combate à pobreza. Primeiro, porque o combate à pobreza não se faz isoladamente nem com donativos. Segundo, porque podemos estar a criar uma ilusão que conduza a relaxar motivações já existentes para o trabalho. Porque, naturalmente, só o trabalho permite gerar riqueza e reduzir a pobreza. Digamos, aceitemos, que na nossa realidade, o trabalho pode não ser tudo. Que não é tudo. Claro que não. Mas, o trabalho não é tudo na nossa realidade, como o não foi em realidade nenhuma. Em nenhuma outra parte do mundo. O que parece certo, sem risco de desmentido, é que só o trabalho permite reduzir a pobreza.
Publicado em Mpauto, Moçambique no Jornal Domingo de Setembro 17, 2006

antes e depois

Luís David


Pensar e decidir


Ainda não desapareceu, por completo, o eco das vozes que se fizeram ouvir sobre os últimos acontecimentos envolvendo agentes policiais. Também não o das afirmações feitas em nome do esclarecimento dos factos. Que, diga-se em abono da verdade, pouco esclareceram. Que trouxeram mais dúvidas que certezas. Talvez, e esta é uma hipótese, uma simples hipótese, um dia, um dia mais tarde, venham a ser conhecidas as causas do sucedido na Matola-Rio. As causas e os contornos. A verdadeira dimensão da ocorrência. É que três morte, três mortes à queima-roupa, tem o valor e o peso que tem que ter três mortes. E o esclarecimento do que se passou antes e depois da ocorrência não pode ficar numa simples declaração pública. Mesmo quando ou só pelo facto de essa declaração ter sido feita por um ministro. Pese o respeito que merecem e que devem merecer todos os ministros. É que matar, matar da forma que vimos, através de imagens televisivas, não pode transformar-se em banal cena do quotidiano. A morte, a morte violenta, seja a vítima polícia ou ladrão, não pode ser banalizada. A violência, o acto violento que antecede a morte ou a imagem da consequência desse acto, ainda menos. Sob pena e risco de nos tornarmos insensíveis à violências. E às imagens de morte violenta. Incapazes de distinguir o bem do mal. Incapazes de distinguir o bom do mau. Incapazes de destrinçar quem cumpre e quem viola a lei. Em caso extremo, de, por falta de referências, caminharmos para uma sociedade sem ética e sem moral. Já estivemos mais longe do que estamos. Mas, ainda estamos a tempo, assim o parece, de inverter o percurso.


Não constitui segredo. É por muitos conhecido. Digamos, é público. E, o que é conhecido e é público é o mau comportamento e a forma errada de actuação de alguns agentes policiais, para além dos casos citados. Ainda recentemente, nas colunas deste Semanário, era denunciada a forma de actuação de alguns agentes da Polícia de Trânsito. E, mais, mencionados os locais preferidos da sua actuação. Da sua indigna e ilegal actuação. Mas, muito provavelmente, ninguém terá lido o que foi escrito. Ou se leu, se acaso leu, não agiu. Se leu, decidiu não agir. As razões, os motivos, só quem tinha o dever de agir e não agiu pode explicar. É que esses “caçadores” de multas continuam, lá vão ficando, dia após dia emboscados. Onde muito bem lhes apetece. Escondidos atrás de viaturas ou de árvores. Em vez de fazerem o serviço que lhes compete, de terem um papel activo e necessário para um melhor fluir do trânsito. Principalmente nos cruzamentos e em horas de maior movimento. Mas não. Como intocáveis que parecem ser e agindo à margem de qualquer comando, lá vão continuando a “fazer pela vida”. É que ninguém acredita, ninguém honesto pode acreditar, que a forma de actuar destes polícias de trânsito resulte de uma ordem superior. Se resulta, se o tipo de trabalho que estão a executar é, de facto, o que lhes foi mandado fazer, estamos muito mal. Estamos francamente mal. Podemos estar a criar, a partir de dentro, e a alimentar um complexo sistema, uma teia de corrupção difícil de eliminar. Naturalmente, e sem muitas delongas, quase tudo do que aqui foi escrito é válido para a Polícia Municipal. É aplicável à Polícia Municipal. Uma e outra necessitam, urgentemente, de avaliar o comportamento individual dos seus membros. E, também, de rever os seus métodos de actuação no terreno. Precisam de uma reciclagem. Precisam de aprender a fazer cumprir a lei que todos conhecem. Não aquela que só alguns conhecem. Aquela que só eles parece conhecerem. A lei do mais forte. E, como estamos a ver, como estamos a assistir, a lei do mais forte é a lei daquele que possui arma. É tempo, ainda temos tempo de parar para pensar. Pensar e decidir.

terça-feira, setembro 12, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Setembro 10, 2006

antes e depois

Luís David


Uma espiral de morte


Nas últimas semanas, a cidade de Maputo registou, no mínimo, três casos de tiroteio. Envolvendo ou contra agentes da Polícia. Houve feridos, houve mortos. No primeiro caso, registado no Bairro do Triunfo, foi morto um chefe de brigada. Num bar, pouco distante de uma Esquadra, foras das suas horas de serviço. E, ao que parece, sem tido tempo para esboçar gesto de defesa. Terá sido assassinado à queima-roupa. No segundo caso, poucos dias depois, dois agentes que, ao que parece, pertenciam à brigada do falecido foram alvo de tentativa de assassinato. Ao princípio da noite, perto da Praça Robert Mugab. Ficaram feridos. No terceiro e último caso, dois agentes da Polícia e um terceiro homem, foram mortos pela Polícia. Em circunstâncias pouco claras. Em circunstâncias algo polémicas e que estão a permitir alimentar diferentes versões. Convenhamos que são demasiados casos e muitos mortos em tão curto espaço de tempo. Principalmente por nesses casos, em todos estes casos, terem estado envolvidos agentes da Polícia. Sem se pretender tirar conclusões precipitadas, parece importante fazer uma reflexão séria e profunda. É necessário que quem tem por missão garantir a segurança e a ordem públicas faça um exercício de reflexão e, para além de palavras de ocasião, através de comunicado deixe claro o que se passa. O que se está a passar.


Da avaliação dos relatos da Informação escrita, fruto de investigação jornalística ou de declarações oficiosas, resulta alguma preocupação. Pode ficar a preocupação de ter existido alguma relação promíscua, alguma ligação perigosa, algum acordo secreto entre agente policial e criminoso. E que quando uma das partes violou esse acordo, as armas disseram de sua justiça. Porque ambas as partes, agente policial e criminoso, estão armadas. É suposto que a arma do criminoso é para praticar o crime. E que a arma do agente policial é para combater o crime. Para defender, para proteger o cidadão do criminoso. Pode não estar a acontecer assim. Hoje, expressões como vingança, traição e ajuste de contas, tornaram-se frequentes. E tornaram-se em tentativas de justificativo para os confrontos armados entre polícias e bandidos. O que em nada ajudando a compreender, menos ainda ajuda a combater o fenómeno. Pode, até, ser motivo de preocupação. E é, certamente. Ora, aceitando como verdade que os dois agentes da FIR, mortos na Matola Rio, eram perigosos bandidos, há muito procurados pela Polícia, fica uma única certeza. A certeza de que, neste momento, não temos certeza nenhuma. Que não é possível, que não nos é possível, neste exacto momento, saber se, quando estamos perante um agente policial estamos perante um agente policial que nos protege ou perante um serviçal dos criminosos. De um agente da polícia ao serviço e pago por criminosos. Sejamos claros e frios no pensar. Ao pensar. Ainda há tempo, parece ainda haver tempo para inverter a situação. Com medidas claras e concretas. Caso não, podemos estar a abrir espaço para uma espiral de violência. Uma espiral de morte.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Setembro 3, 2006


antes e depois

Luís David


ainda não mudou

Quando em Angola foram dados os primeiros tiros, os tiros anunciadores do caminho para a independência, Salazar proferiu uma frase que ficou célebre: Para Angola e em força. Uma frase que era, em simultâneo, a definição e a afirmação de uma política. Da sua política. Mas, também, da política que iria perdurar, que iria ser seguida mesmo para além da sua morte. Que iria ter, exactamente, a mesma duração temporal do regime. E que terminou quando o regime terminou, quando o regime caiu de podre. A 25 de Abril e com o 25 de Abril. As vozes e os sentimentos, agora, eram outros. Era novo o sentir e era novo o pensar. E, frase do ditador encontrava resposta noutras. De recusa em continuar a guerra, de recusa em participar na guerra. Para a guerra nunca mais. Nem mais um soldado para o Ultramar. No tempo passado, ficavam venturas e desventuras. Hoje, cantadas e contadas por quem tem arte e engenho para tanto. Ou a tal de propõe. Para trás, ficavam, muitas centenas, milhares de desertores. De migrantes forçados, como solução para não participar na guerra. E ficavam, também, muitas imagens de dor e de sofrimento, de choro e de ansiedade. De angústia. De homens e de mulheres. De pais e de mães. De filhos e de irmãos. De noivas ou de esposas. Era a hora da partida. De uma partida sem certeza de regresso.

A televisão, as televisões têm a força que têm. E o poder para nos fazer transportar onde entendem que devemos estar. Ou, muito simplesmente, para nos mostrar aquilo que entendem que devemos ver. Aquilo que desejam que seja visto por nós. Não poucas vezes, em directo, em tempo real. É assim que, decorridas que são mais de quatro décadas, aquelas imagens parecem repetir-se. Parecem ser as mesmas. E, neste caso, é a televisão do Portugal que as oferece. Em directo. Concordamos que o cenário seja outro. Mudou. O local de partida já não é o mesmo. O Cais de Alcântara deu lugar ao Aeroporto de Figo Maduro. Mas a dor e o sofrimento, o choro e ansiedade, estão lá. Nos mesmos rostos. Ou, até pode acontecer que os rostos sejam outros. Que sejam, neste tempo, já de netos e avós. Afinal, o tempo passa e passa lesto. E o passar do tempo parece, tantas vezes, fazer apagar a memória. Sobretudo a memória colectiva. O que não faz, o que não pode fazer, é mudar a consciência. Para quem sabe o que isso é. Para quem a possui. Mas, para além do cenário, para além do local de embarque, algo mais mudou. Mudou, parece ter mudado, o sentimento do dever, e o sentimento, a obrigatoriedade de cumprir o dever. Ou, um dever. Por isso, hoje, nos tempos que correm, já não há desertores. Já não há contestação. Pela simples razão lógica de ter deixado de haver quem conteste. Quem tem vontade de contestar. Ou, porque quando se contesta, quando alguém contesta tenta abafar-se-lhe a voz. O que, nem sempre produz bons resultados. O que nem sempre produz os resultados desejados. A prova aí está. A prova é Cahora Bassa. Por isso, Cahora Bassa continua motivo de contestação. Cahora Bassa está em Moçambique. Cahora Bassa é produto moçambicano. Caso não, haveremos de concluir que Portugal não mudou. Que, mais de quarenta anos depois do 25 de abril, ainda não mudou.
Publicado em Maputo, Moçcambique no Jornal Domingo de Agosto 27, 2006

antes e depois

Luís David

uma sociedade de medo

Temos de concordar que há certas situações que todos sabemos existirem. Quando não por conhecimento directo, por conhecimento indirecto. Até que um dia, um certo dia, surge a confirmação pública. Então, aquilo que até então poderia parecer um boato, aquilo que até então poderia parecer uma simples suposição, deixa de ser boato e deixa de ser suposição. Passa a ser facto e passa a ser verdade. Pois então, se estamos a falar de carros roubados e estamos, efectivamente, a falar de carros roubados e de carros traficados, ficámos todos a saber que existe uma rede que actua a partir do Chókwè. Quem o confirma (ver o jornal “Zambeze” de 24 do corrente mês), é o governador da província, para quem a situação está sob controlo. E, indo mais longe, para tentar dar credibilidade à sua afirmação, até terá dito mais. Terá dito que “já foram identificadas as pessoas que se dedicam a está prática”. Mais disse, ainda, mas o que disse mais não vem a propósito citar. Agora, o que não disse, e isso não disse, é que esses de tais que diz estarem identificados irão ser detidos e presentes a Tribunal. Porque confirmar que há redes de traficantes de carros que actuam entre a África do Sul e Moçambique não tem qualquer significado. Todos nós sabemos, por ser público, que em tempos não muito distantes o governo de Cabo Delgado comprou carros roubados. Todos nós sabemos, por ser público, que se vendem carros roubados em Moçambique. E, aqui, a cidade da Matola até parece ter créditos antigos. Um exercício que deve ser feito, terá de ser no sentido de procurar saber o que faz a Polícia perante este manancial de conhecimentos de acções criminosas que lhe são fornecidos. O que, podendo não ser um exercício fácil, é um exercício necessário. Enquanto assim não acontecer, sequer vale a pena afirmar que se está a fazer combate ao crime.


Esta semana, em Maputo, dois agentes da Polícia foram atacados e feridos com armas de fogo, como foi amplamente noticiado. Anteriormente, o chefe da brigada a que pertencem havia sido morto. Ao que parece, sem hipótese nem possibilidade de defesa. Sem possibilidade de dizer uma palavra, sequer. Digamos que, sumariamente morto. Assassinado a sangue frio. Perante esta e a outra realidade, de nada serve dizer, de nada adianta dizer que somos fortes. E que andam por aí a tentar dizer que somos fracos. É que a questão não está em dizer. A questão está em demonstrar e, mais do que demonstrar, em provar. E, a Polícia tem, tem de ter, homens treinados e especializados para combater este tipo de crime. Porque, ao que se sabe, sempre teve. As redes de traficantes de carros não surgiram hoje. A sua existência era conhecida há vinte, talvez vinte e cinco anos atrás. E se, até hoje não foram, ao que parece nenhuma foi desmantelada, não terá sido por falta de meios. Terá sido por tudo menos por falta de meios. E, dizer que foi por falta de vontade pode parecer violento. Temos de convir e de dizer, em abono da verdade, que nestas últimas décadas algumas dezenas de moçambicanos deram as suas vida, muitas das vezes, talvez com elevada dose de ingenuidade, por causa que era sua e por causa que lhes disseram ser comum. Pura mentira. Pura propaganda. Poderá, é certo, não ter sido um sacrifício em vão. Poderá não ter sido um sacrifício em vão. Mas, não foi suficiente, não terá sido suficiente para evitar que continuemos a viver, cada dia mais, naquela a que bem se pode chamar uma sociedade de medo.
Publicado em Maputo, Moçcambique no Jornal Domingo de Agosto 19, 2006

antes e depois

Luís David


o medo do criminoso pode fazer alterar a lógica

O crime organizado é isso mesmo. É crime e é organizado. O crime organizado, para além de ser crime, tem como base uma organização. Um sistema. Uma hierarquia. O crime organizado, nunca foi e alguma vez será, aquilo que conhecemos como quadrilha de ladrões. Como a quadrilha que actua no bairro, durante a noite, ou em pleno dia numa qualquer artéria citadina. Que rouba telefone móvel, artigos diversos, valores mais ou menos elevados destinados ao pagamento de salários a trabalhadores. E que, de quando em quando, tiro para cá, tiro para lá, deixa umas tantas vítimas caídas por aí. O crime organizado parece, e é, coisa bem diferente. Bem mais sofisticada. Com métodos de actuação, aparentemente, irrepreensíveis. Integrando pessoas, aparentemente, honestas. Mas que, convenhamos, não olham a meios para atingir os seus fins. E, os seus fins são o crime. Digamos que, em última análise, o crime organizado pode, até, integrar os mais insuspeitos. Gente que a gente se habituou a ver como gente boa. Como aquilo a que se chama, erradamente, gente de bem. Gente sorridente bem falante. Mas que, pode bem acontecer, tem ao seu serviço todo um exército que lhe obedece e que está sempre pronto a executar as suas ordens, a cumprir os eus desígnios. O crime organizado, como hoje o conhecemos, como hoje é, tem tentáculos, tem ramificações por onde menos se possa imaginar. Usa, utiliza a ameaça e a chantagem. Para conseguir, para impor o silêncio. Daí o silêncio, os muitos silêncios. As muitas vozes silenciadas.


Cinco anos depois, pouco ou nada se sabe, publicamente, sobre o assassinato de Siba-Siba Macuácua. Ou, por outra, sabemos, todos, o que todos sabem. Que era um homem bom e honesto, que foi incumbido de uma missão. Depois, bem, depois foi assassinado. Sabemos, também, como foi praticado o crime. Continuamos a não saber, também, quem o praticou. Agora, neste tempo de hoje, colocam-se as perguntas que sempre se colocam neste tipo de assassinatos. Como, por exemplo, a quem interessava a morte da vítima. Pensa-se, admite-se, talvez de forma errada, que aos devedores ao Banco Austral. Mas, poderá não ser assim. Poderá ser útil colocar outras hipóteses de investigação, outras hipóteses de trabalho. Assim, poderá ser útil alertar para outros caminhos, para outras vias de investigação. Bloqueadas, aparentemente, até hoje. Por exemplo, pode ser útil, em termos de investigação e de busca da verdade, conhecer mais do que o nome dos devedores. Saber, conhecer, os nomes dos gestores que autorizaram os empréstimos. Saber quem concedeu os créditos. O que, até hoje, permanece segredo. É que há, continua a haver, nomes de devedores, mas não há nomes de quem autorizou os empréstimos, nomes de quem é responsável pelas dívidas. Depois, a questão lógica que se coloca, que se coloca em relação a este crime, deve ser colocada em relação a outros. Anteriores. A pergunta, pode ser colocada nos mesmos termos. A quem interessou a morte de Carlos Cardoso, a quem interessou, anteriormente, a morte de Samora Machel. É facto, comprovado, que o crime organizado tem uma lógica. A lógica do criminoso. Já não é facto comprovado que o crime organizado seja lógico. O factor medo, aqui, pode ter um peso determinante. Ou seja, o medo do criminoso pode fazer alterar a lógica.

domingo, agosto 13, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Agosto 13, 2006

antes e depois

Luís David


mais de uma Cahora Bassa

Acontece por vezes. Pode acontecer muitas vezes. Duas ou mais pessoas empregarem as mesmas palavras, utilizarem os mesmos termos. Mas não se entenderem, não estarem a falar da mesma coisa. É que as palavras e os termos, sendo os mesmos, podem não estar a ser utilizados com o mesmo sentido, com o mesmo significado. E, isto nas questões mais simples como nas mais complexas. Em termos presentes, exemplo de aparente desencontro é Cahora Bassa. É que, muito que se tem dito, muito que se tem escrito, sobre ou acerca da Barragem. Sendo que a dúvida que sobressai, a questão que se pode colocar, é se todos os actores, se todos os autores, estão a pronunciar-se sobre uma e a mesma coisa. Se Cahora Bassa é, afinal, coisa única. E se, mesmo sendo coisa única, é possível dela termos uma visão única. E unificada. Ou se, mesmo sendo coisa única, a posição e o posicionamento individual de cada um, conduz, ou pode conduzir a percepções diferentes. Nesta perspectiva, poderão existir tantas Cahora Bassa quantos os observadores, tantas Cahora Bassa quanto a percepção de cada um dos observadores. Sejam eles muitos ou poucos.


Todos sabemos que Cahora Bassa é um assunto, é um tema caro a muitos moçambicanos. Obviamente, que não só pela Barragem em si própria. Mas, pelo que ela significa, pelo que ela simboliza. Também, e sobretudo, por motivo do longo, entortado e torturante processo de negociação. Que tem por objectivo, que se pretende conduza à passagem do seu controlo para o Estado moçambicano. Que tem por objectivo, repita-se, ainda não alcançado. Ora, parece ser precisamente aqui que surgem as tais diferentes visões sobre uma mesma Cahora Bassa. Muito provavelmente, por falta de um exercício que conduza ao recordar dos factos e à avaliação da história das últimas três décadas. Mas, também, de um exercício que permita avaliar se a Cahora Bassa a que se referem os Acordos de Lusaca é a mesma de que estamos a falar no presente. Ou se não é. No concreto, parece ser aqui que se confrontam as diferentes percepções sobre Cahora Bassa. Por um lado, há quem pense ser possível trazer, hoje, para a mesa das negociações a Barragem tal como existia e era vista e entendida em 1975. Por outro lado, pode haver quem entenda recordar que as mais de 600 torres de transporte de energia para a África do Sul não caíram com o vento. Que foram derrubadas, que foram sabotadas em nome de uma causa. Que até poderá ter encontrado simpatia por parte de pessoas próximas a sucessivos Governos de Portugal. Quando não apoio, mais ou menos camuflado. Assim vista a questão, poderá haver mais de uma Cahora Bassa.

sexta-feira, agosto 11, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Agosto 6, 2006

antes e depois

Luís David

traça a política quem tem o dinheiro

A crise no Médio Oriente, o conflito entre Israel e o Líbano, parece longe do fim. Ao certo, a Conferência de Roma não produziu os resultados desejados, não foi conseguido um cessar-fogo. Não importa neste espaço, saber quem tem ou não tem razão. È que, para além da razão, há aspectos que parece importante reter. Há aspectos em que vale a pena pensar. Meditar. Por exemplo, no número de mortos, de um e de outro lado. Na destruição de edifícios e de infra-estruturas. No quanto irá custar reconstruir o que foi destruído em poucos dias. Certamente, muitas centenas de milhar de dólares norte-americanos. A que se terá de adicionar o custo do armamento. Que alguém terá de pagar a alguém. Infalivelmente. É cedo para vaticinar quem irá ganhar e quem irá perder esta guerra. O que se pode afirmar é que quem está a ganhar são as indústrias de armamento. Mas, como todos o sabemos, o mundo tem muitas injustiças. Tem destas injustiças. Uns, podem comprar as mais sofisticadas armas para se matarem, para se liquidarem reciprocamente. Outros, poucos são os meios que possuem para evitar morrer devido a uma doença banal e de fácil cura. Quando não devido à fome.


Autoridade sanitárias nacionais divulgaram, há poucos dias, que a malária matou mais de três mil pessoas em Moçambique, apenas no primeiro semestre do corrente ano. Um número de mortes elevado, um número de mortes deveras elevado. Provocado pela simples picada de um mosquito. Certamente, muitos mais milhares perderam a vida por toda a África, no mesmo espaço de tempo. Ora, a malária é uma doença que tem cura. Digamos, até, que é de fácil diagnóstico e de fácil tratamento. Que há muito devia ter sido erradicada do nosso Continente. E que se o não foi, como de facto não foi, não é por falta de conhecimentos científicos. É por motivos outros e bem diferentes. É, muito simplesmente, por falta de dinheiro para comprar medicamentos. É, muito simplesmente por falta de dinheiro para construir fábricas e produzir medicamentos a baixo custo. Quer a doença se chame malária ou HIV/SIDA. É, muito simplesmente, porque ninguém investe numa fábrica de medicamentos quando, depois, não há dinheiro para comprar esses mesmos medicamentos. E aqui chegados, pode colocar-se uma questão. Bem simples. A questão de saber quantas fábricas de medicamentos poderiam ter sido construídas em países africanos com os milhões de dólares já gastos na guerra entre Israel e o Líbano. Ou, até, sendo mais modestos, com o dinheiro gasto em actividades diplomáticas para conseguir o fim do conflito. Certamente, muitas. E, certamente, também, muitos milhares de pessoas deixariam de continuar a morrer por doenças tão facilmente curáveis como a malária. O que sendo, de facto, uma questão de dinheiro também é, em primeiro lugar, uma questão política. Ou seja, que traça a política quem tem o dinheiro.
Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Julho 23, 2006

antes e depois

Luís David


um cheque “careca”

Bem andou Joaquim Chissano, enquanto Presidente da República, ao tentar fazer reverter a hidroeléctrica de Cahora Bassa para Moçambique. Já perto do fim do seu mandato manifestou, até, publicamente, o desejo de deixar encerrado o “dossier” HCB antes de deixar a Presidência da República. Não haveria de o conseguir. Apesar de as promessas serem muitas e ao mais alto nível. Apesar de ter havido alguns avanços nas conversações. Mas, a realidade é que os recuos foram sempre maiores. Depois, a Chissano sucedeu Guebuza. E, o desejo de ver revertida a HCB para Moçambique foi renovado e repetido. O processo de negociação, bastas vezes interrompido por crises políticas em Portugal, retomado. O montante a pagar por Moçambique, acordado. Finalmente, em Novembro do ano passado, os dois países assinaram um memorando de entendimento. Em Lisboa e ao mais alto nível. Parecia que, assim, estava a ser virada uma página na história dos dois países, Mas, não. Sabe-se hoje que não. É que Portugal, por si só, não pode, não tem poderes, não está credenciado para vender o que é seu. O que construiu em país terceiro, embora com objectivos colonialistas. De facto, quanto pode a globalização. Como é grande o poder dos globalizadores de hoje.


Por maior que tenha sido a pressão de Moçambique para assinar, em Novembro do ano passado, o memorando de entendimento com Portugal, algo de estranho deverá ter sucedido então. Ou, outra hipótese, algo de anormal aconteceu de Novembro para cá. É que custa perceber que, no acto da assinatura, o governante português não soubesse que a União Europeia tinha, como parece continuar a ter, a última palavra a dizer sobre o negócio. Mas, até podemos conceder o benefício da dúvida. Até podemos admitir que não sabia. Neste caso, nesta hipótese, seria correcto vir dizer, publicamente, que não conhecia as implicações para o seu país, do documento que assinou em nome de Portugal. O que, para alguns ou visto à distância, no tempo e no espaço, poderia ser interpretado como uma prova de fraqueza. Digamos, mesmo, de incompetência. Mas, por outro lado, se sabia, se sabia que o documento que assinou só tem validade quando sancionado por órgão competente da União Europeia, deveria tê-lo dito na ocasião. É que assim, vistas as coisas como as estamos a observar no momento actual, fica-se com a sensação que algo não correu bem. Que as palavras foram apenas palavras de ocasião. E que pouco ou nada têm a ver com os actos. Logo, que as intenções manifestadas não passaram, até hoje, disso mesmo. De intenções. Ou, se quisermos usar uma linguagem bancária, o memorando de entendimento sobre a HCB tem, para Moçambique, o valor que tem um cheque sem cobertura, um cheque sem provisão. Ou, como é dizer do povo, deram-nos um cheque “careca”.
Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Julho 23, 2006

antes e depois

Luís David


ministro não é fiscal


Um pouco por todo o país, existem edifícios públicos construídos há muitas dezenas de anos. Na maioria dos casos, trata-se de construções sólidas. Logo, de custo elevado. Na maioria dos casos, serão construções pensadas e concebidas para durar longas décadas. Possam ou não, no tempo presente, necessitar de trabalhos de manutenção ou de reabilitação. O tempo e o uso, assim o podem exigir. Acontece agora, hoje, que muitos dos edifícios públicos parece que são construídos a pensar num tempo de duração medido em anos. Não em décadas. Mas, pior do que esta falta de visão, pior que esta (má) estratégia, é a péssima qualidade do trabalho, da construção em si mesma. Que parece ninguém ver ou não querer ver. Muito recentemente, aí tivemos o que todos o que todos vimos com as casas do Fundo de Fomento da Habitação. Esta semana, foi o governador de Sofala, a fazer de fiscal de obras públicas. A fazer o trabalho que os fiscais não fizeram. Ou fizeram mal. Aconteceu em Marínguè. Onde um escola nova não possuía sanitários para raparigas. E, cúmulo dos cúmulos, as janelas não tinham dobradiças. De facto, a fazer fé nos relatos vindos a público, quando mais se caminha para longe das capitais provinciais, mais distante fica, também, a qualidade do trabalho realizado. Sem qualquer justificação plausível.



A má qualidade de obras públicas não começa nem termina em escolas, postos de saúde ou hospitais. Atinge também artérias urbanas e estradas nacionais onde são investidos muitos milhares de biliões de meticais. Mesmo que da nova família. E, exemplo à vista de todos é o da Estrada Nacional Número Um. Em que a qualidade do trabalho realizado é diferente de troço para troço. Como diferente é o dia da noite. Aqui, temos um pavimento liso e impecável. Mais além, um piso diferente e onde começam a aparecer buracos. Noutro local, onde existe obra de arte, o terreno começa a ceder, a dar origem a sulcos declives com vários centímetros de desnível. Um perigo, já, para a circulação automóvel. Quanto à sinalização vertical, nem vale a pena falar. É, em si mesma um desastre. Com placas a autorizar 100 quilómetros por hora dentro de centros urbanos e, pior, após as quais existem lombas. Simplesmente ridículo e revelador de incompetência. Mas tem mais, tem placas a dar por findo o limite de uma determinada velocidade, sem que exista, anteriormente, qualquer placa de limitação. É caso para perguntar, uma vez mais, por onde anda a fiscalização. O que fazem ou o que fizeram os fiscais da obra. A resposta, terá de ser que não fizeram nada. Que não fizeram o trabalho que é a razão de ser da sua existência e, pelo qual, são pagos. O motivo pelo qual não fizeram o trabalho que deveriam ter feito, fica ao critério da imaginação de cada um. O que não custa prever, é que não irá passar muito tempo sem termos, de novo, um ministro no papel de fiscal. Embora, convenhamos, todos o sabemos, ministro não é fiscal.

sábado, julho 08, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Julho 9, 2006


antes e depois

Luís David


nada será como dantes


Há alguns meses, tive necessidade de fazer um exame médico. De uma das clínicas da cidade, enviaram-me para o serviço competente no Hospital Central de Maputo. No dia e na hora marcados, lá fui. Enquanto aguardava para ser atendido, aproxima-se de mim alguém com quem não cruzava desde há muito tempo. Ar jovial, sorriso aberto, pergunta: “Já não se lembra de mim?”. “Claro que lembro”, respondo. E, como que a tentar provar que me lembrava de verdade, concluo: “Tanta vez tomávamos café juntos, no Lobito, andava você na Faculdade de Medicina”. E, como que a provar não ter estado parado durante todos estes anos, remata: “Pois, desse tempo, hoje somos todos cirurgiões”. Ora, ao falar “desse tempo”, o meu amigo estava a referir-se aos finais dos anos setenta. Nesse tempo, o café Lobito, que ainda hoje existe, ali na Eduardo Mondlane, funcionava um pouco como centro social do Ministério da Saúde. Mas era, também, frequentado por alguns jornalistas da Revista “Tempo”. De passagem para a Faculdade de Medicina, ali paravam, também, alguns estudantes. As mesas eram poucas, o espaço reduzido. Este condicionalismo ajudava ao convívio, à convivência, à conversa sobre os assuntos mais diversos. É que cada um, ao chegar, sentava-se na mesa onde havia cadeira vaga. Quando havia. Recordo que, entre os frequentadores habituais do Lobito, havia também alguns timorenses. Um belo dia, a conversa girava em torno de curso e de trabalho, de emprego. Foi quando, em tom de brincadeira, talvez em tom de provocação, alguém perguntou a um a dos refugiados daquela colónia portuguesa: “E tu, quando concluíres o curso, o que pensas fazer?”. A resposta, certamente impensada, veio rápida e curta: “Quero ser cooperante”.


Foi no dia 22 de Junho passado que Xanana Gusmão dirigiu uma “mensagem à nação, em tétum, na sua qualidade de Presidente da República de Timor-Leste. Trata-se de uma intervenção pública, feita em plena crise institucional, da qual o “Savana” publica, na sua última edição, excertos traduzidos para português. Um texto que merece, sem dúvida, leitura atenta. Talvez, mais ainda, estudo aprofundado. Dado que, ao que perece, terá sido esta a primeira vez que as profundas divisões entre timorenses foram tornadas públicas. E, conclusão imediata e primeira, é que é bem fácil criar um Estado, mas bem mais difícil construir uma nação. Aqui, neste caso, com a agravante de que não sendo Timor-Leste, ainda, uma nação, o seu Estado é frágil. Depois dos últimos acontecimentos, poderá ter ficado, ainda, mais fragilizado. Logo, a democracia pode estar, pode ter sido colocada em perigo. Se democracia é coisa boa ou má, faz parte de uma outra discussão. O que não parece discutível é falar em democracia e não querer aceitar as regras da democracia. O que é difícil de entender é como uma geração de homens, que se reclamam de patriotas, não conseguem chegar a uma plataforma de entendimento. Não conseguem criar uma base de entendimento e uma plataforma de unidade nacional para, a partir daí, começarem a construir a nação timorense. País pobre, pequeno, com pouca população, Timor-Leste, é a realidade que é. Não pode ser governado de fora, mas também não é possível dividir metade de uma ilha. Neste contexto, que é o da realidade nacional, e no contexto da realidade asiática, quantos enviados especiais aterrarem em Dili, mais fácil será ultrapassar a crise. Com uma certeza, porém: Depois de 22 de Junho de 2006, nada será como dantes.
Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Julho 9, 2006


antes e depois

Luís David


nada será como dantes


Há alguns meses, tive necessidade de fazer um exame médico. De uma das clínicas da cidade, enviaram-me para o serviço competente no Hospital Central de Maputo. No dia e na hora marcados, lá fui. Enquanto aguardava para ser atendido, aproxima-se de mim alguém com quem não cruzava desde há muito tempo. Ar jovial, sorriso aberto, pergunta: “Já não se lembra de mim?”. “Claro que lembro”, respondo. E, como que a tentar provar que me lembrava de verdade, concluo: “Tanta vez tomávamos café juntos, no Lobito, andava você na Faculdade de Medicina”. E, como que a provar não ter estado parado durante todos estes anos, remata: “Pois, desse tempo, hoje somos todos cirurgiões”. Ora, ao falar “desse tempo”, o meu amigo estava a referir-se aos finais dos anos setenta. Nesse tempo, o café Lobito, que ainda hoje existe, ali na Eduardo Mondlane, funcionava um pouco como centro social do Ministério da Saúde. Mas era, também, frequentado por alguns jornalistas da Revista “Tempo”. De passagem para a Faculdade de Medicina, ali paravam, também, alguns estudantes. As mesas eram poucas, o espaço reduzido. Este condicionalismo ajudava ao convívio, à convivência, à conversa sobre os assuntos mais diversos. É que cada um, ao chegar, sentava-se na mesa onde havia cadeira vaga. Quando havia. Recordo que, entre os frequentadores habituais do Lobito, havia também alguns timorenses. Um belo dia, a conversa girava em torno de curso e de trabalho, de emprego. Foi quando, em tom de brincadeira, talvez em tom de provocação, alguém perguntou a um a dos refugiados daquela colónia portuguesa: “E tu, quando concluíres o curso, o que pensas fazer?”. A resposta, certamente impensada, veio rápida e curta: “Quero ser cooperante”.


Foi no dia 22 de Junho passado que Xanana Gusmão dirigiu uma “mensagem à nação, em tétum, na sua qualidade de Presidente da República de Timor-Leste. Trata-se de uma intervenção pública, feita em plena crise institucional, da qual o “Savana” publica, na sua última edição, excertos traduzidos para português. Um texto que merece, sem dúvida, leitura atenta. Talvez, mais ainda, estudo aprofundado. Dado que, ao que perece, terá sido esta a primeira vez que as profundas divisões entre timorenses foram tornadas públicas. E, conclusão imediata e primeira, é que é bem fácil criar um Estado, mas bem mais difícil construir uma nação. Aqui, neste caso, com a agravante de que não sendo Timor-Leste, ainda, uma nação, o seu Estado é frágil. Depois dos últimos acontecimentos, poderá ter ficado, ainda, mais fragilizado. Logo, a democracia pode estar, pode ter sido colocada em perigo. Se democracia é coisa boa ou má, faz parte de uma outra discussão. O que não parece discutível é falar em democracia e não querer aceitar as regras da democracia. O que é difícil de entender é como uma geração de homens, que se reclamam de patriotas, não conseguem chegar a uma plataforma de entendimento. Não conseguem criar uma base de entendimento e uma plataforma de unidade nacional para, a partir daí, começarem a construir a nação timorense. País pobre, pequeno, com pouca população, Timor-Leste, é a realidade que é. Não pode ser governado de fora, mas também não é possível dividir metade de uma ilha. Neste contexto, que é o da realidade nacional, e no contexto da realidade asiática, quantos enviados especiais aterrarem em Dili, mais fácil será ultrapassar a crise. Com uma certeza, porém: Depois de 22 de Junho de 2006, nada será como dantes.
Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Julho 2, 2006

antes e depois

Luís David


interesses cruzados

Decorria o ano de 1985 quando a RENAMO destruiu cerca de 300 torres de transporte de energia de Cahora Bassa para a África do sul. Ao tempo, Portugal não terá reagido. Não terá tomado uma posição pública de condenação. É necessário entender que era um tempo em que, de forma aberta ou encoberta, apoiava, de diferentes maneiras, o movimento que Afonso Dhlakama já dirigia. Mesmo perante elevados prejuízos financeiros. Como terá sido o caso, pela sua qualidade de principal accionista da hidroeléctrica. Ora, acontece que a guerra, todas as guerras, obedecem a estratégias complicadas, difíceis de entender. Sem lógica. As referências, tantas vezes feitas, ao envolvimento a militares no activo ou a serviços secretos, parecem querer dizer exactamente isso. Parecem provar que os objectivos pelos quais se diz declarar uma guerra podem não ser aqueles que se pretendem atingir. E, esta guerra passou, sem margem para dúvidas pelos interesses do eixo Salisbúria-Pretória-Lisboa. Negar que assim não foi, será como negar a história. Como será negar a história não entender que as motivações e os objectivos de quem lutava não eram exactamente os mesmos de quem, do exterior, mandava destruir, raptar, matar.


Após prolongadas e demoradas conversações, o processo parecia próximo do fim. Parecia que Portugal, finalmente, havia aceite fazer uma negociação séria. Havia compreendido que os objectivos que ditaram a construção da barragem pertencem ao passado, pertencem a outro tempo, pertencem ao tempo do senhor António de Oliveira Salazar. Numa palavra e em resumo, parecia ter entendido que a Barragem de Cahora Bassa foi construída numa perspectiva colonial – fascista. E, acrescente-se, de acordo com uma estratégia militar que visava, em ultima análise, permitir a continuidade da permanência de Portugal em Moçambique. Como país dominador, obviamente. E que havendo entendido, o que afinal parece não ter ainda percebido, havia aceite passar a accionista minoritário da Hidroeléctrica de Cahora Bassa. Mas, ao que se verifica, enganou-se quem pensou que outros assim haviam pensado, que outros eram movidos por esta visão. É que, entre os outros, há alguns com desejos e com interesses bem diversos, bem diferentes. Diferenciados. E, a prova aí está, através de declarações públicas, recentes, de governantes portugueses. Cuja argumentação é menos do que falaciosa. O pode querer dizer, o que bem pode significar, que os objectivos e os interesses de quem fala não os mesmos que quem manda falar. Que há interesses escondidos, que há interesses cruzados.
Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Junho 25, 2006

antes e depois

Luís David


o petróleo tem muita força

Ouro, diamantes, petróleo. Três importantes fontes de riqueza. Três importantes elementos, três importantes factores de convulsão política. De lutas pelo poder político. Em casos extremos, motivo de guerra. Naturalmente fratricidas. Hoje, mais do que nunca antes, o petróleo constitui-se – ou pode constituir – factor destabilizador de um país, de uma região. Vivemos, desde há alguma décadas, numa economia assente, baseada, no petróleo. Numa época em que o desenvolvimento exige o consumo de mais e mais petróleo. Logo, parece compreensível que seja o petróleo que mais exércitos faz movimentar. Quer para o controlo das reservas, quer para o controlo das rotas de transporte. É assim no mundo inteiro. E, África faz parte do mundo. Sudão e Nigéria são exemplos actuais. Maus exemplos, claramente. Mas, são exemplos reais de lutas internas pelo controlo da exploração e pela distribuição da riqueza gerada com a sua venda no exterior. Em ambos os casos, que não serão os únicos a nível do Continente, podem existir conflitos étnicos e religiosos. Há sinais da existência de um profundo conflito entre cristianismo e Islão. Neste contexto, embora, aparentemente, possamos estar perante guerras de baixa intensidade, estaremos, igualmente, perante conflitos de duração prolongada. E, logo, só por si, consumidores de uma riqueza que se pretende equitativamente distribuída.


A um outro nível, ao nível dos países integrantes da CPLP, Angola foi o que serviu de cenário ao conflito mais prolongado. No período posterior à independência de cada um. Poderá dizer-se, sem margem para acusação de especulação, que à guerra angolana não é estranho o facto da existência de diamantes e de petróleo. Principalmente petróleo. Ao longo da sua história recente, a Guiné-Bissau tem sido, terra de golpes e de contra-golpes. Mas, também ali há petróleo. A São Tomé e Príncipe, em tempos idos terra de escravos e da monocultura do cacau, bastou o cheiro do petróleo. Logo começaram as lutas internas pelo poder. Pela posse da riqueza. Mais recentemente, foi a vez de Timor-Leste engrossar a lista dos países em convulsão política por culpa do petróleo. Também aqui, como em muitas outras partes do mundo, o petróleo está a fazer movimentar exércitos. Já está a fazer movimentar exércitos. De países vizinhos, uns, como a Austrália. De país bem longínquo, outro, como Portugal. Subjacente a esta crise política e institucional, podem estar, e parecem estar, conflitos entre elites locais. Obviamente, com interesses radicados no exterior. Mas, e talvez pior do que isso, podemos estar perante o reacender de um conflito religioso secular. Que teve a sua origem quando o primeiro português ali chegado pretendeu criar meia ilha cristã num mar de ilhas muçulmanas .Meia ilha cristã, repita-se, como espinho encravado no país com maior população muçulmana do mundo. Naturalmente, haverá muitos outros factores que conduziram ao despoletar da presente crise. Há. E há, sobretudo, muito oportunismo. Que pouco ou nada terá a ver com os interesses nacionais, com os interesses do povo timorense. Os próximos dias serão decisivos para se saber quem vence. Se vence o petróleo ou se vence a religião. Na certeza, porém, de que o vencedor de hoje poderá não ser um vencedor definitivo. E com a certeza de que o petróleo tem muita força.
Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Junho 18, 2006

antes e depois

Luís David


assim haja vontade

Foi há um tempo que a memória não sabe precisar. Passam meses. Muitos. Seguramente algumas dezenas. Aconteceu em Maputo, como muitos de nós estão recordados. Aconteceu na zona central da cidade. Aconteceu que um prédio, com vários andares, destinados a habitação, ruiu. Enquanto estava a ser construído. Melhor dizendo, auto-cosntruído. O que, como foi dito na ocasião, é ilegal. Para averiguar as causas da derrocada, foi aberto um inquérito. Cujos resultados, ao que parece, ainda não foram divulgados. Ou, caso sim, passarem desapercebidos. Embora, no caso vertente, inquérito tenha sido um exercício inútil. Por desnecessário. Saltava à vista de quem quis ver, que a construção não reunia um mínimo de condições para se manter de pé. De resto, idêntica ou igual forma de construir parece estar enraizada um pouco por todo o Moçambique. Raro é passar uma semana em que não aparece notícia sobre escola ou posto de saúde. Nesta ou naquela província. Pior em épocas de chuva intensa, de temporal, de vendaval. Mas, a par desta “calamidade nacional”, podemos observar, somos, muitas das vezes, informados de outra. A de obras públicas por concluir. A de obras públicas por concluir, mas pagas. Como isto acontece, como é possível isto continuar a acontecer, em pleno ano de 2006, nunca alguém se dignou explicar. E, aqui, não é uma questão de não saber. É uma questão de não querer. É uma questão de não ser abrigado a. Logo e em resumo, é uma questão de poder.


Foi noticiado esta semana. No ano de 2000, o Fundo de Fomento da Habitação mandou construir 100 casas nos arredores de Maputo. Que, de acordo com o contratado, era suposto estarem concluídas em 2002. Mas, acontece, todos o sabemos, estamos quase a entrar na segunda metade de 2006. E de casas, pelo menos de casas com um mínimo de qualidade, de casas que justifiquem o pagamento, pelo Estado, de 320 mil contos por cada uma, poucas existem. Serão, no máximo, vinte. Quem o verificou no local, terá sido o Ministro das Obras Públicas e Habitação. Em pessoa. E que, logo ali, no local, terá dito que construtores que não respeitem os padrões de qualidade acordados, devem ser excluídos de futuros concursos para obras públicas. Entende-se que o posicionamento é, em tudo, correcto. Em termos de futuro, em termos de acautelar os interesses do Estado nos tempos que hão de vir. Mas, não impede nem evita que tenham de ser colocadas algumas questões quanto ao passado. Ao ontem. Então algumas das muitas questões que podem ser colocadas, aí ficam. Seria importante, pelo menos parece ser importante, saber o motivo pelo qual só quatro anos depois do prazo previsto para a entrega das casas se verificou que a construção não respeita as normas acordadas. Depois, se os construtores irão ser ou não responsabilizados por não terem entregue as casas conforme o estabelecido. A seguir, sem ser necessariamente por fim, o que lhes pode acontecer a eles, construtores, e aos funcionários do Estado que permitiram que tivessem construído com a qualidade que construíram. Este, ao que parece, será um dos muitos casos de conhecimento público que poderá permitir abrir caminho no sentido da moralização dos negócios públicos. Basta que, para tanto, assim haja vontade.
Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Junho 11, 2006

antes e depois

Luís David


uma atitude irrepreensível.


Foi há quatro décadas. A Sociedade Portuguesa de Escritores premiava “Luuanda”, de Luandino Vieira. Salazar, homem pouco dado a coisas da cultura, não terá gostado da brincadeira. É que, para além de outros prováveis motivos, o laureado encontrava-se preso no Tarrafal. Por motivos políticos. Vai daí, mandou dissolver a referida sociedade e prender alguns dos membros do júri. A decisão do ditador bem poderá ser sido um, mais um, erro. É que, bem poderá ter fomentado o desejo em possuir o livro, como coisa proibida. E fomentou. Como chamou a atenção e deu nome a um escritor encarcerado. Nome e, possivelmente, mais força para continuar a escrever. Ora, hoje, passados mais de quarenta anos, o autor de “Luanda” é confrontado com nova realidade. E, ao que parece, para alguns, volta a ser incómodo. Não terá gostado que lhe tenham atribuído o “ Prémio Camões”. Recusou. As razões, são suas. Pessoais. E, a ninguém assiste o direito de as negar. Seja a que pretexto for, seja com o argumento que seja. Em última análise, pode dizer-se que a recusa é o reflexo de uma maneira de ser e de estar. Ou, entrando no campo da especulação, que reflecte um posicionamento político.


Muito naturalmente, a recusa do escritor angolano em deixar-se premiar levantou celeuma. Parece, até, ter criado embaraços aos promotores do prémio. Pois, bem se vê, não é todos os dias que aparece alguém a recusar cem mil euros. Sequer a recusa está prevista em regulamento. Logo, vem ao de cima a mentalidade mercantil. Começam as dúvidas e as conjecturas sobre o destino a dar ao dinheiro. Ora, e esta parece ser a questão de fundo, o escritor não recusou o dinheiro. Recusou, isso sim, o prémio. Acaso houvesse aceite receber o dinheiro para, depois, o doar a qualquer instituição, implicava aceitar o prémio. E o que Luandino disse sem dizer, foi que não queria o prémio. Que não aceitava o prémio. Está no seu pleno direito. Até é muito provável que outros tivessem gostado, antes dele, de ter assumido idêntica posição. Que, no plano da ética, parece uma atitude irrepreensível.

terça-feira, junho 06, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de 4 de Junho, 2006

antes e depois

Luís David


a falta de gás é uma questão de preço


Maputo enfrenta uma aguda crise de falta de gás doméstico. O que, à partida, podendo parecer um problema doméstico, caseiro, não o é. A falta de gás doméstico na capital do país, é mais do que a simples escassez, é mais do que a simples falte de um produto. Pode ser entendida como um problema nacional e um problema político. De nada adianta, hoje, atirar culpas para o vizinho, para refinarias estrangeiras. Porque o que salta à vista é a nossa vulnerabilidade, a nossa falta de capacidade de armazenamento, a nossa dependência do exterior. Pode custar a acreditar, mas parece ser a realidade. Como parece ser realidade que, fontes alternativas de fornecimento e aumento da capacidade de reserva nunca terão sido devidamente encaradas. Embora sendo, como parece ser, o gás doméstico, um produto estratégico. Hoje, perante a crise, de nada vale carpir. Mas, a situação perece aconselhar, aponta para a necessidade de uma reflexão profunda.


Hoje, restam poucas dúvidas sobre a existência de petróleo em Moçambique. Se as reservas são pequenas ou são grandes, é outra questão. A partir de que preço no mercado internacional é rentável a sua exploração, apresenta-se como novo ponto. O que constitui facto, o que é realidade é que Moçambique possui gás. Que explora e é um país exportador de gás. Nesta lógica, parece fazer pouco sentido que possa enfrentar uma crise de falta de gás doméstico. Mesmo reconhecendo-se que há diferenças entre o gás que exportamos e o tipo de gás que importamos. Podendo, até, acontecer que o importador do gás moçambicano não é o mesmo que exporta gás para Moçambique. Convenhamos que sim. Mas se sim, podem não ter sido devidamente acautelados interesses dos consumidores moçambicanos. De resto, muito se fala em capacidade de reserva nacional, em tempo de duração dessa reserva. Pouco, quase nada ou nada se diz sobre quanto custa aumentar essa capacidade. Não custa muito prever que a actual crise de falta de gás seja prelúdio de novo aumento de preço. Para não se ter de dizer que esta crise, como muitas outras crises, é uma crise artificial. Sendo mais benevolente, é uma crise que podia ter sido evitada. Sendo mais claro, a falta de gás é uma questão de preço.

sábado, maio 27, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Maio 28, 2006

antes e depois

Luís David


mais do que meros números


“Duas datas marcaram vincadamente o século XX: 1914 e 1945. A primeira data marcou o início da chamada Grande Guerra – um dos mais absurdos conflitos na história humana. Esses quatro anos de combates deixaram dez milhões de mortos e um número muito maior de mutilados e doentes mentais. Também se apoderaram de uma Europa próspera e em franco progresso e deixaram-na prostrada. A tragédia reside na estupidez de reis, políticos e generais que desejaram e avaliaram de forma errada as proporções que o conflito iria assumir e a simplória vaidade de pessoas que pensavam que a guerra era uma festa – um caleidoscópio de vistosos uniformes, coragem masculina, admiração feminina, desfiles de moda e a alegre despreocupação da juventude imortal.[As guerras coloniais deviam ter servido como uma advertência, mas o uso de armas automáticas e de repetição contra “selvagens” deixou intacta a confiança do homem branco. Entretanto, a guerra dos Bóeres na África do Sul, onde os Britânicos sofreram terríveis baixas, devia ter insuflado um prudente temor. Nada disso: uma década depois, a mortandade causada pelas metralhadoras nos campos da Flandres parece ter sido recebida como grande surpresa. Comandantes obtusos calcularam com impecável lógica que venceria o exército que mantivesse os seus soldados de pé e a atirar até ao fim. Os generais obtiveram promoções, medalhas e estátuas, normalmente equestres. Os seus homens morreram na lama.”


O texto acima transcrito abre o capítulo 27 (pag. 523), de “A Riqueza e a Pobreza das Nações – Porque são algumas tão ricas e outras tão pobres”, da autoria de David S. Landes. Trata-se, naturalmente, de uma obra que nos faz viajar ao longo de vários séculos. E que se apresenta hoje, mais do que nunca, de extrema utilidade. Principalmente, quando teimamos em ignorar fenómenos que nos estão próximos. Ou quando pretendemos transformar o nosso desejo em realidade e damos importância ao que significa pouco mais do que nada. Digamos que, em última análise, estamos perante uma obra de leitura obrigatória. Não só para quantos lidam e trabalham com questões ligadas ao desenvolvimento, mas, também e especialmente, membros de organizações não governamentais. Como princípio, como base para a compreensão de que não são projectos isolados que motivam o desenvolvimento de um país. Tão pouco apenas dinheiro ou donativos. Que, se úteis e necessários, apenas mitigam situações ocasionais, apenas podem resolver problemas conjunturais. Pouco mais do que isso. Talvez nada mais do que isso. Desenvolvimento exige, naturalmente, planos concertados e concentrados. Resultantes ou que vão ao encontro de uma vontade e de uma motivação internas, nacionais. O desenvolvimento pode fazer-se com ajuda, pode requerer ajuda externa. Mas é, inevitavelmente, um processo interno. Um processo que não pode ser feito de fora para dentro. E cujos resultados não se situam apenas no terreno das percentagens. Consistem em mais do que meros números.
Publicado em Mpauto, Moçambique no Jornal Domingo de Maio 21, 2006

antes e depois

Luís David


no fundo da gaveta do esquecimento


Coloquemos a questão, façamos a pergunta: Acaso alguém sabe quantas toneladas de drogas pesadas já foram apreendidas neste país? Digamos, por exemplo, nos últimos dez anos. Muito provavelmente, a resposta será evasiva. Se não, mesmo, negativa. Mas, também poderemos questionar quantas toneladas dessas drogas apreendidas foram, efectivamente, destruídas. Também aqui, muito provavelmente, não teremos uma resposta concreta, uma resposta única, uma resposta oficial. De resto – e isso todos o sabemos – a droga não foi produzida para ser destruída. Foi produzida e corre mundo para ser consumida. Por quem dela depende. Interessante, curioso, é saber que várias toneladas de droga aprendidas em Inhambane, há alguns anos, ainda aguardam por oportunidade pare serem destruídas. E que foi necessária uma visita de trabalho do Presidente do Tribunal Supremo àquela província, para se decidir a sua transferência para Maputo. Por falta de condições locais para a destruição. Aceitemos que sim. Mas, concordemos, dois/três anos é muito tempo, é uma longa espera. Tempo demasiado para criar a tentação do desvio. O apetite do negócio por conta própria.


Passa mais de uma semana que foi noticiada a apreensão de uma tonelada de haxixe, na cidade de Maputo. Apreensão efectuada de forma algo bizarra, algo estranha, segundo os relatos da época. Acontece, os dias continuam a passar calmos. O tempo corre sereno. Nomes dos traficantes, continuamos a não ter o direito de saber. Resultados das investigações já efectuadas, nada. Só há segredo. A única coisa que há, é segredo. Um segredo misterioso. Como misterioso terá sido o desaparecimento do suposto proprietário da droga. Em pleno dia, no populoso Bairro do Aeroporto. Um desaparecimento que, certamente, perante o olhar mais atento de quantos lhe estavam próximo, só terá sido possível por artes mágicas. Ou se assim convier, com o apoio ou os favores de algum deus menor. A história recente do crime organizado, em Moçambique, já nos mostrou como se pode invocar a protecção divida, ou a inspiração numa divindade, como alibi para a fuga de uma cadeia. Mas, deixando para além a fuga do suposto proprietário, hoje parece não se saber se a droga ainda está ou não no armazém onde foi descarregada. Ao certo, ninguém confirma, ninguém arrisca em dizer que sim. Mas, também ninguém desmente, ninguém diz que não. Aparentemente, parece haver um mal disfarçado interesse para arrumar o assunto na gaveta do esquecimento. Lá bem no fundo da gaveta do esquecimento.
Publicado em Maputo, Moçambique jo Jornal Domingo de Maio 14, 2006


antes e depois

Luís David


informações evasivas


Parece confirmado que Moçambique é um corredor de droga. Que há droga que entra e que sai, que passa, que circula pelo território nacional. Indo e vindo das mais diversas partes do mundo. Transportada por barco ou por avião. Muito possivelmente, também por terra. Confirmado pode estar, também, que nunca se saberá quem é o verdadeiro dono do produto. Esta semana, as Alfândegas apreenderam mais uma tonelada de droga. Que entrara no país, desta vez, através do Porto de Maputo. Mas, até ao momento, com nome e com rosto, existe apenas o motorista que transportou o contentor até um bairro da periferia. Contratado, horas antes, na praça onde se perfilam viaturas de aluguer. Quem enviou e quem recebeu o contentor, os nomes do remetente e do receptor, ninguém sabe. Ou, se sabe, ninguém quer dizer. O que se sabe, é que quem contratou o motorista teve tempo para fugir. Quando o contentor começava a ser descarregado. Deixando abandonada, também, a viatura em que se fazia transportar. Terminada a história, as Alfândegas dizem ter cumprido a sua missão. Que daqui por diante, o assunto é com a Polícia. A Polícia, diz que nada diz. O que, à partida, significar que a história se repete. Que, mais ou menos detalhe, a história pode vir a repetir-se.


É, a todos os títulos, compreensível que a Polícia não pode divulgar aquilo que não sabe. Ou, não tem a certeza de saber. Como é aceitável que evite divulgar qualquer informação que possa vir a comprometer o trabalho de investigação. Mas, convenhamos, há limites para tudo. Até para o sigilo da investigação. É que o sigilo ou o segredo, quando levados ao extremo, podem levar à falta de transparência na investigação. Como podem ser sua consequência directa. Dizer, informar, simplesmente, que o assunto está a ser investigado, é o mesmo que dizer nada. Ou a justificação por não ter feito nada. Pior ainda, pode ser uma forma, primária, para tentar esconder o que já se conhece e deseja que não seja do domínio público. Invariavelmente, a falta de informação correcta, a falta do relato de factos verdadeiros, conduz à especulação. Conduz ao boato e leva à intriga, cria a suspeição a suspeita. Ora, neste caso concreto, no caso da apreensão, esta semana, de uma tonelada de droga, não revelar o nome do destinatário ou do intermediário significa, no mínimo falta de transparência. Mais, e sem entrar no campo da especulação, pode haver quem entenda esta atitude como de encobrimento de nomes. De protecção a traficantes, mesmo que involuntária. Há que reter, sobretudo, que depois dos espaços informativos que o assunto mereceu, não é possível ficar calado. Ou, pior, prestar informações evasivas.

terça-feira, maio 09, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Maio 7, 2006

antes e depois

Luís David


cuidado com os abutres


O termo corrupção aparece com relativa frequência na nossa linguagem. Na linguagem do dia-a-dia, na linguagem de todos os dias. Mas e infelizmente, na maioria dos casos, a corrupção doméstica continua sem produzir corruptos. Será, em última análise ou em última instância, um fenómeno híbrido. Pelo menos, assim o parece querer fazer acreditar quem defende que não há corruptos sem corruptores. O que é verdade. Como verdade é o inverso. Como é verdade que não há corruptores sem corruptos. Ora, a afirmação primeira, a firmação de que não há corruptos sem corruptores, encerra, à partida, um perigo. O perigo de constituir não só o primeiro passo para a aceitar a corrupção mas a aceitação, implícita, da conivência com os corruptos. Pode até ser, em última análise, a forma acabada para legitimar a corrupção. Mesmo sabendo e sabendo-se que se corrupção representa um custo ou um prejuízo para o cidadão, em nada ou em caso algum pode beneficiar o Estado. Pode, na generalidade dos casos, ter reflexos, maiores ou menores, nas receitas públicas. Logo, no geral, todos os cidadãos saem prejudicados.


Temos de concordar que, não raras vezes, o combate à corrupção começa e acaba no discurso oficial. Ou que os resultados das acções desencadeadas não são conhecidos, não são divulgados. A menos que o termo corrupção se preste a uma interpretação de tal forma lata, que não tenha para todos o mesmo sentido. O mesmo significado. Ou que situações que conhecemos, directa ou indirectamente, devam ser definidas como extorsão ou, em última análise, como tentativa de. Desta forma, estaríamos perante casos de corrupção por extorsão. Que os há por aí. Deitando, assim, por terra a tese que não há corrupto sem corruptor. Ora, são conhecidos e corriqueiros os casos das multas sobre infracções ás regras de trânsito. Assim como estes assuntos são resolvidos no local da infracção. Algumas vezes provocadas pelo próprio agente. Como, por exemplo, acontece num dos cruzamentos da Avenida 24 de Julho. Onde uma peanha, aparentemente abandonada, não passa de uma “ratoeira”. É que o agente, que devia regular o trânsito, está metros à frente a mandar parar quem não efectuou a viragem como ele pretendia. Depois, as multas devem ser tantas que seria interessante conhecer as receitas cobradas a favor do Estado. Ou se sequer há controlo sobre o livro de multas. Ora, também há situações, também há casos, bem diferentes. Digamos, mais sofisticados. E, nesta segunda categoria, podem enquadrar-se aqueles que levam o cidadão a recorrer a um qualquer serviço público. Para obter um qualquer documento. Pior, mas muito pior, quando se trata de documento para aceder a benefício concedido pelo Estado. Não que o Estado, como Estado, conceda e não queira entregar o que concedeu. Não é isso. O que parece estar a acontecer é a existências de funcionários que se sentem no direito de partilhar o benefício concedido. E vai daí, ensaiem todo o género de jogadas, todo o género de manobras, para demorar para retardar o processo. Sempre e invariavelmente com recurso às desculpas mais esfarrapadas ou mais exóticas. Num processo que se arrasta por meses. Que chega a demorar mais de um ano, segundo afirma quem está por dentro do assunto. É que, primeiro, a verba já está esgotada. Depois, cerca de dois meses depois, após deslocações e perdas de tempo evitáveis, o mais difícil já está feito. Só falta o director assinar. Venha para a semana. Mais tarde, afinal, nem tudo estava bem: O computador de outra entidade, maldito do computador, não imprimiu as últimas linhas de um documento. É preciso outro. Substituído que foi, parecia que tudo estaria bem. Finalmente. Mas, não, ainda não. O director, para assinar, necessitava de mais um parecer do director que emitira o documento inicial. Algumas semanas mais tarde, o tal parecer fez-se presente. Então, é quando surge nova informação: Parece que a verba já está esgotada. É claro que não estava. Mas tinham passado oito meses desde o início do processo, com alguns recados bem claros pelo meio. Do género: “O chefe acaba de telefonar a dizer que fulano veio falar com ele”. Resposta: “Outra vez? Isso é só para dizer que falou com o chefe. Não adianta nada”. Ora, saber se estamos perante casos de corrupção ou de extorsão, é pura retórica. Mas, cuidado com os abutres.

quarta-feira, maio 03, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Abril 30, 2006


antes e depois

Luís David

ver o país com olhos moçambicanos

Sem que o facto tenha alguma vez sido explicado, analisado, revelamos uma teimosa tendência para exagerar nos números. Uma teimosa, uma perigosa, tendência para aceitar ler e interpretar números de forma defeituosa. Seguindo normas e preceitos que pouco, muitas das vezes nada, têm a ver com a nossa realidade. Seguindo, talvez, critérios de leitura e de análise impostos. E que podem, em última análise, alterar a realidade caseira. Sendo que conceitos e métodos de análise não são estáticos, sendo que estão em permanente transformação, parece necessária e oportuna alguma explicação. Sobretudo em relação aos critérios seguidos em determinadas circunstâncias, em determinados casos concretos. Se assim não for e enquanto assim não acontecer, continuaremos a correr o risco de só conseguir ver o país através de olhos estrangeiros. Os números, as estatísticas, são úteis e são necessárias. Mas, em absoluto, valem o que valem. Valem aquilo que cada um quiser que valha. E, podem, até, valer pouco ou nada. Sequer vale a pena citar casos concretos.


Depois, aquilo que nos dizem ser bom e verdadeiro, aceitamos. Boamente. Somos, de facto, muito bons. Só assim se entende que aceitemos o que parece inaceitável. Que aceitemos o que parece incrível. Aquilo que na nossa realidade e perante a nossa realidade faz pouco sentido. É que, organismos de estatística de vários países realizaram, recentemente, um inquérito ao sector informal nacional que, segundo dados preliminares, emprega doze milhões de pessoas (“Notícias”, 28 de Abril de 2206). O matutino começa por escrever que O sector informal no país emprega mais de 87 por cento dos cerca de 14.401.500 indivíduos com idades superiores a sete anos. E, acrescenta que o informal movimenta um volume de negócios na ordem de dois mil milhões de meticais por ano. Ora, salvo melhor opinião e com o devido respeito, parece haver alguns equívocos. O primeiro, é que trabalho não significa emprego. Ele há pessoas que podem trabalhar uma vida inteira sem alguma vez terem tido emprego. A menos que emprega não signifique empregar. Signifique dar trabalho. Se assim é, ficamos a saber que se pode trabalhar a partir dos sete anos de idade. Mas, mais e pior, ficamos também a saber que, a partir dos sete anos, já ninguém vai à escola. Está tudo no informal. Ora, a forma absolutista e radical como os números são divulgados, cria uma visão deturpada da realidade do país. A menos que haja alguma conveniência, que haja algum interesse muito bem escondido, para classificar o camponês produtor de algodão, de tabaco ou de milho, o criador de bovinos ou de caprinos, o produtor de carvão e o pescador, como informais. Se assim é, este país é, na sua essência e ele próprio, um país informal. Ora, seja ou não difícil e doloroso, temos de nos habituar a ver o país com olhos moçambicanos.

sábado, abril 15, 2006

Publicado em Maputo, Moçambique, no Jornal Domingo de Abril 16, 2006

antes e depois

Luís David

não é caso único

Nos últimos têm sido, entre nós, sistemáticos, os apelos ao passado. A um passado recente. Desejamos, ao que parece, regressar ao passado. Viver no passado. Porque, pensam e dizem os nostálgicos, o passado foi bom. No passado tudo foi bom. O presente, esse é mau. No presente, tudo é mau. Aqui, parece implícita uma falta de capacidade de leitura da história e de interpretação da história. De contextuar a história. Mesmo quando recente. E, isto, para perceber, para entender, que o aconteceu ontem, num determinado contexto, não se pode repetir hoje, em contexto diferente. Por mais forte que seja o nosso desejo, por mais sincera que seja a nossa vontade de repetição. E, esta saudade do passado, este desejo quase mórbido de ver o passado ser presente, pode não ser mais do que a falta de capacidade para encarar o futuro. Talvez reflicta, até, um inconsciente medo do futuro.

Em “O Mundo é Plano”, bestseller nos EUA, Thomas L. Friedman, oferece-nos “Uma breve história do século XXI”. Livro interessante, por demais interessante, que nos permite entender a que velocidade alguns países caminham para produzirem riqueza. Alguns, repita-se. Assim como as reformas a que procederam, onde e quando tiveram sucesso. Assim como e onde não tiveram. Por exemplo, depois de explicar como a China ultrapassou o México como principal fornecedor dos Estados Unidos, escreve: A China não quer apenas enriquecer. Quer ser poderosa. A China não quer apenas aprender a fabricar automóveis da General Motors (GM). Quer ser a GM e retirar a GM do negócio. Quem quer que duvide disto devia passar algum tempo junto dos jovens chineses. E, logo a seguir, citando Luis Rubio, Presidente do Centro de Investigação e Desenvolvimento do México: Quanto mais autoconfiança temos, mais as nossas mitologias e complexos diminuem. Um dos aspectos mais fantásticos do México no início da década de 90 foi o facto de os mexicanos terem percebido que eram capazes de fazer as coisas. Opina o mesmo mexicano que a falta de autoconfiança leva a que um país continue virado para o passado e que a falta de confiança que existe no México significa que a mentalidade prevalecente é a que os Estados Unidos os vão reduzir a empregados de limpeza. O autor do livro, cita um humorista norte americano do século XX, Will Rogers, a dizer: “Mesmo que estejas no caminho certo, serás atropelado se ficares sentado”. E, conclui: Quanto mais plano e mundo se torna, mais rapidamente isso irá acontecer. O México conseguiu entrar no caminho certo com as reformas “por atacado”, mas, depois, devido a inúmeras razões tangíveis e intangíveis, ficou sentado e as reformas “a retalho” não aconteceram. Quanto mais tempo o México ficar sentado, mais facilmente será atropelado, e não será caso único. Concordemos que não será caso único. Admitamos que não é caso único.