domingo, março 21, 2004

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo
21 de Março 2004

antes e depois

Luís David


Descubram quem são esses alguns




Para quem tenha memória de algumas décadas, sabe que assim era. E que pode ser comprovado através dos relatos da Imprensa da época. Sabemos, os que temos memórias desse então, serem relativamente frequentes notícias do desaparecimento de crianças. Notícias de crianças desaparecidas, que se dizia terem sido raptadas ou encontradas mortas. Sem determinados órgãos. Como sabemos, todos nós, todos os que não perderam a memória desse então, que o destino final desses órgãos humanos e dessas mortes raramente era conclusivo. Para uns, destinava-se a servir objectivos ligados à feitiçaria. Para outros, o móbil era poder cumprir ritos iniciáticos. Não raro, o desaparecimento de crianças sem deixarem rasto era atribuído a ismaelitas. Se sim se não, continua, até hoje por esclarecer. O certo, do que parece não haver muitas dúvidas, é que em certas regiões de África, como em certas regiões da Ásia, que em determinadas comunidades dos dois continentes existem, até hoje, este tipo de sacrifícios humanos. E o que se sabe, também, é que perante a necessidade de sacrifício imposto por determinadas tradições, ou se sacrifica um membro da sociedade local ou, em alternativa, se compra um sacrificado. Não admitir, não querer aceitar, como hipótese de trabalho, como hipótese de investigação, que crianças moçambicanas possam estar ser sacrificadas é, no mínimo, ridículo. Em termos de investigação, todas as hipóteses, à partida, são importantes e são válidas. E se há, como parece haver, quem procura fazer investigação, séria e honesta, porquê tentar impedir esse processo. Porquê tentar passar a mensagem de que nada há para investigar. Porquê insinuar, ou afirmar abertamente, que a província de Nampula está a ser prejudicada em termos de investimento. Porquê toda esta fobia em torno da procura da verdade. Que interesses outros, económicos mas talvez não só, estão camuflados por detrás de certos posicionamentos tão contrários a uma investigação completa. E, conclusiva. Afinal, a quem incomoda, tanto, a verdade.


Ao longo dos últimos dias, chegaram às Redacções diferentes posicionamentos sobre o alegado tráfico de menores e de órgãos humanos a partir da província de Nampula. Na generalidade, apontam para a necessidade de serem admitidas todas as hipóteses de investigação e para a necessidade de investigação. È que só fazendo uma investigação séria e honesta será possível saber se estamos perante um boato ou se estamos perante atitudes criminosas. Ter medo da investigação, e dos seus resultados, é ter medo da verdade. Se, como alguns dizem, sem terem conseguido provar, tudo não passa de invenção de mulher adoentada da cabeça, tanto melhor. Afinal, as crianças que se disse terem sido raptadas e mortas estão vivas e de boa saúde. E terá mentido quem se deu ao trabalhos de exumar os seus restos mortais. Porque delas não existem restos mortais. Estando vivas. Da mesma forma que o corpo mutilado do homem encontrado na via férrea não terá passado de montagem fotográfica. Afinal, ele até está vivo e goza de boa saúde. Como vivo está o jovem de Manica, mas talvez não de boa saúde, a quem foi cortado o pénis. Depois, por fim, a que atribuir a tentativa do presidente do Conselho Municipal de Nampula para evitar uma manifestação, pacífica, marcada para hoje, dos católicos locais. Uma manifestação contra o tráfico de órgão humanos. Todos nós, excepto alguns, ao que parece, somos contra o tráfico de crianças e de órgãos humanos. Deixo a dúvida sobre quem são esses alguns. Descubram quem são esses alguns.