sábado, janeiro 31, 2004

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo
Fevereiro 1, 2004

antes e depois

Luís David

ficaremos eternamente gratos


Ciclicamente, digamos que todos ou quase todos os anos, Moçambique enfrenta o problema da cólera. Todos os anos, muitas centenas, mesmo milhares de pessoas acorrem aos hospitais do país quando atingidas pela chamada doença das “mãos sujas”. A maioria, felizmente, resiste. Mas, todos os anos, o número de vítimas mortais situa-se, no mínimo, na casa das dezenas. Anos houve, em que o Ministério da Saúde teve necessidade de apelar ao apoio internacional para evitar a perda de maior número de vidas humanas. Este, neste ano de 2004, o Ministério da Saúde fez saber que estava preparado, a nível nacional, para enfrentar um eventual surto de cólera. Ainda bem que o fez e que o anunciou. Publicamente. Mas, e esta parece ser a questão de fundo, o problema parece não estar em combater a cólera mas, isso sim, em evitar que ela se declare. Que ela surja. E, evitar a cólera podendo ser, também, um problema do Ministério da Saúde não é, exclusivamente, um problema do Ministério da Saúde. Que, uma vez declarada a epidemia, limita-se, como não pode deixar de ser, a actuar como bombeiro. Inverter a situação, definitivamente, passa por saber quanto se investe para salvar a vida de um doente com cólera e quanto teria sido necessário investir para evitar a epidemia e a contaminação. O exercício, podendo parecer matemático, é político. Muito simplesmente político.


A cidade de Maputo conta, neste momento, com certa de duas dezenas de mortos devido à cólera. E, já o número de vítimas havia ultrapassado a dezena quando, vá lá o cidadão comum procurar saber porquê, um comunicado do Conselho Municipal, redigido em termos arrogantes e autoritários, mandava encerrar as chamadas “barracas” que confeccionam refeições. Quer-se dizer, desse dia em diante só era autorizado comer em restaurantes ditos de “luxo”. Por outras palavras, por palavras outras e diferente: Os ricos que comam à fartazana, mesmo quando os restaurantes onde comem não tenham sido objecto de inspecção nenhuma. Os pobres que se lixem, que morram à fome. È que, em termos estatísticos, ou de ajuda internacional, parece ser mais fácil justificar uma morte por falta de alimentos a uma morte motivada por cólera. Só que, e há sempre um que e um mas, os visados pela desastrada medida de mandar encerrar as “barracas” decidiram, e muito bem, fazer a ouvir a sua voz. Decidiram fazer ouvir-se para defenderam os seus direitos. Como cidadãos, como munícipes, como pagadores de impostos e de taxas camarárias. Como comerciantes honestos. Até porque, num curto espaço de tempo, já havia a chamada Polícia Camarária a confiscar tachos, panelas e comida, e o mais que fosse possível. Dizer que tudo isto foi, metodicamente, preparado para atingir certos objectivos pode parecer pura especulação. Mas, é, sem dúvida, cada dia mais pesada a herança que estes senhores pretendem deixar para futuro presidente do Conselho Municipal de Maputo. Se não é pedir muito, se não é pedir demasiado, desapareçam da cena política, sumam, hibernem. Nós outros, todos nós outros, ficaremos eternamente gratos.