terça-feira, junho 19, 2007

O fundamentalismo ganha terreno

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Junho 3, 2007

antes e depois

Luís David

Numa das minhas poucas idas a Portugal, a companhia em que fiz transportar acabava de proibir o consumo do cigarro a bordo. Em conversa com o pessoal de cabina, houve quem me disse que a decisão tinha mais a ver com a economia de combustível do que, propriamente, com questões de saúde. Se sim ou se não, é uma dúvida que nunca procurei esclarecer. O que é facto é que, aparentemente algo revoltada com a decisão, a hospedeira me permitiu fumar. Viajava eu, como sempre, na última fila de cadeiras. A dado momento, já devia ir no terceiro cigarro, tocou-me delicadamente no ombro e disse: “Já chega”. Respeitei o que me era dito. Já no regresso, as coisas foram bastante diferentes. Não houve nem momento nem oportunidade para fumar. E a ordem de não fumar teve de ser cumprida. Mas, aconteceu algo de curioso e que me parece revelador dos interesses em torno do negócio do tabaco. Interesses muitos e variados. Aconteceu, então, que servida a refeição o pessoal de cabina começou a fazer circular os carrinhos com os vários artigos disponíveis a bordo. Desde relógios a isqueiros, passando pelos lenços de seda até aos cigarros. Cigarros, exactamente. Quer dizer, a bordo do avião não se podia fumar, mas era possível adquirir cigarros. Quando abordado sobre se desejava algum artigo, respondi afirmativo. E perguntei se ao comprar um volume de tabaco podia fumar um cigarro. A resposta foi um, óbvio não, acompanhado com um sorriso amarelado. Pensei e disse, que me parecia provocação oferecer cigarros a quem fuma e num local onde não lhe é permitido fumar. Durante muitas horas. Aliás, uma provocação sádica.



O Dia Mundial Sem Tabaco foi também, como é natural, assinalado em Moçambique. Os malefícios do consumo de tabaco são, hoje, por demais conhecidos. Daí que muitos países estejam a aprovar legislação que limita o número de locais onde é permitido fumar. Mas, convenhamos, só isso ou pouco mais do que isso. Do que foi dito em Moçambique, por ocasião da data, retivemos algumas palavras do Governador de Sofala. Considerou o Alberto Vaquina o vício do tabaco uma epidemia global que está de uma forma crescente a invadir os países e regiões em vias de desenvolvimento. Noutro passo da sua intervenção, alertou que a indústria do tabaco continua a lançar no mercado novas formas de apresentação do tabaco, de forma mais disfarçada, aparentemente pouco prejudiciais à saúde e mais atraentes para os consumidores. Não podiam ser nem mais justas, nem mais acertadas, nem mais correctas as palavras do médico Alberto Vaquina. Só que a problemática do tabaco não começa nem acaba no fumador. Os malefícios do tabaco, esses sim, parecem exclusivos do fumador. Mas o fumador é, em último capítulo, a face visível de uma complexa teia. De interesses os mais diversos. E perversos. É, na generalidade, uma vítima. Uma vítima de um sistema complexo de cruzados interesses económicos. Mas, muitas das vezes também políticos. O cultivador da planta do tabaco, o intermediário, o industrial, o armazenista, o vendedor, não são elementos marginais à sociedade. E tanto o não são que, como sucede em Moçambique, se socorrem do Governo, se acolhem ao Governo, para tentar fazer valer os seus interesses. De resto, a forma, em muitos casos absolutamente iníqua, como se encara o combate ao consumo de tabaco, é prova de que quem menos importa é o fumador. De resto, fumar é um direito de quem quer fumar. Com a única condição de não prejudicar nem atentar contra o direito de quem não quer fumar. Mas, o realismo começa a ser nenhum. O fundamentalismo ganha terreno.