segunda-feira, novembro 01, 2004

Publicado em Maputo, no Jornal Domingo de 31 de Outubro, 2004

antes e depois

Luís David


a história não se compadece nem aceita estes desvarios


Até hoje, quase trinta anos depois da independência nacional, continuamos sem uma história do Moçambique moderno. Sem uma história una e unificada. Sem uma história das tensões, das resistências, das lutas e das traições registadas no espaço que Conferência de Berlim definiu como território de Moçambique. Sobre o passado mais remoto, julga saber-se alguma coisa com veracidade. Ou, o que se sabe, o que se conhece, aceita-se como verídico. Não se contesta. Raramente se contesta. Do passado mais recente, parece saber-se bem menos. Do passado que começa com a luta pela independência, sabe-se pouco. Sabe-se menos do que devia saber-se. Porque importe saber pouco ou por falta de investigação séria e profunda. Para saber mais. Depois, depois, parece haver em muitos de nós um certo conformismo para aceitar as muitas histórias que os outros contam de nós. Sobretudo, sobre nós. Sabemos, todos dizemos ter consciência de se tratar de uma visão ocidental da nossa história. De uma visão europeista e eurocêntrica da nossa história. Mas, será nesta falta de capacidade de fazer diferente, de fazer coisa outra, de fazer coisa moçambicana, que reside, provavelmente, o principio do afro-pessimismo. E, o afro-pessimismo, tenhamos consciência disso, não é uma maneira nem de ser nem de estar. È a forma como outros imaginam que somos. Como querem que sejamos. E, por isso, assim nos catalogam.

Em tempos recentes, foram muitos os trabalhos de investigação editados em Portugal nos quais Moçambique aparece referenciado. Sabe-se mais, hoje, sobre a FRELIMO, através de investigadores portugueses, ou do que escreveram norte-americanos, do que através de trabalhos de investigadores moçambicanos. O mesmo parece não ser válido para Angola. Apenas um exemplo: É conhecido, hoje, o número do passaporte marroquino utilizado por Marcelino dos Santos. Da mesma forma que se sabe, desde há vários anos, por estar escrito em diferentes trabalhos de investigação, que Eduardo Mondlane recebeu dinheiro do governo norte-americano. Agora, à distância que o tempo nos separa desse facto, querer insinuar que Mondlane era agente da CIA, afigura-se como desonestidade intelectual. A verdade é que bastou um jornal português, no caso o “Expresso”, ter-se feito eco da publicação de um livro, no qual Mondlane é citado como tendo recebido apoio financeiro dos Estados Unidos, para se falar em financiamento da CIA ao fundador da FRELIMO. Mas que sim, que assim tenha sido. Certamente que não foi por ter recebido apoio financeiro americano que Mondlane foi menos moçambicano, que foi menos nacionalista que os seus sucessores que receberam apoio, não só financeiro, da União Soviética e da China. Com o mesmo objectivo, que era o da alcançar a independência. Para se poder julgar, hoje, o posicionamento de Mondlane nesse então, precisamos de nos saber situar no seu tempo. E, o seu tempo, foi o da era Kennedy, foi o de um tempo em que os Estados Unidos da América defendiam, aberta e claramente, a independência das então colónias de Portugal em África. Neste contexto, no contexto em que viveu e actuou, Mondlane foi, terá sido, um homem do seu tempo. Terá sido um homem que utilizou os argumentos possíveis e ao seu alcance, à época, na luta pela independência de Moçambique. A esta distância no tempo, tentar interpretar a acção de Eduardo Mondlane ser ter presente o que foi a era Kennedy, pode conduzir a alguma desonestidade intelectual. Tentar interpretar o posicionamento de Mondlane fora de contexto é, em última análise, um desonestidade intelectual. E, a história não se compadece nem aceita estes desvarios.