sexta-feira, janeiro 12, 2007

Para que possa haver história

Publicado em Maputo, Moçambique no Jornal Domingo de Dezembro 31, 2006



antes e depois

Luís David

“Quase Memórias”, em dois volumes, da autora de António de Almeida Santos, é mais do que o título diz ser. É que pretendendo não ser um livro de memórias, o não o é, de facto. Pela simples razão de ir muito para além das memórias do autor. Ao conter um profundo trabalho de investigação. Por isso mesmo, bem pode situar-se no plano de um documento comparativo dos diversos processos de colonização e de descolonização. Mostra-nos, sobretudo, como a Grã-Bretanha e a França descolonizaram, com sucesso aqui, com insucesso além. E, com igual clareza, profundidade e simplicidade de linguagem, explica os motivos que levaram Portugal a seguir por caminho diverso. A teimar por uma via sem qualquer hipótese de sucesso, a seguir, teimosamente, por um caminho que conduziu à queda do regime. Estamos a falar de uma obra que, ao longo de mais de mil páginas, segundo o autor, não pretende apresentar a verdade. Por isso, logo nos adverte, a partir da primeira linha da “Breve explicação” com que inicia Primeiro Volume: Quando, finda a descolonização, foi tempo de balanço dela, e os Portugueses se dividiram em avaliações, identificação de causas e imputação de culpas, e vi muitas vezes deturpada, , e em consequência mal julgada a minha intervenção no processo, prometi ao País que, no tempo oportuno, tornaria pública a minha verdade, (sublinhado meu) sobre esse “sismo” que tanto abalou consciências e vidas. E, sobre a demora na escrita do livro, acrescenta: Porquê tanto tempo? Pela razão elementar de que a história deve ser servir-se sedimentada e fria. [...] E porquê agora? Porque a história da descolonização e dos sentimentos que a sublinharam, já arrefeceu o bastante, e porque fui ficando velho, e era de todo o ponto exigível que eu depusesse sobre ela antes de eu próprio arrefecer.


Recentemente lançada em Moçambique, mais precisamente na cidade da Matola, a obra de António de Almeida Santos, assim o pensamos, irá merecer atenção e reflexão a diversos níveis. Desde académicos, estudantes e estudiosos dos problemas africanos no geral, a protagonistas da história moçambicana das últimas décadas. É que, como o autor cedo adverte, a minha verdade, a verdade do autor ou a percepção ou o conhecimento que o autor teve de determinados factos num determinado momento, possa não ser a verdade. De resto, é preciso situar-nos no plano de que a verdade em absoluto não existe. Assim, ao relatar sobre “A minha acidentada deslocação a Angola e a Moçambique”, António de Almeida Santos, diz de Soares de Melo, último governador-geral, (pag. 258) que Ainda conseguiu imprimir a sua marca pessoal a algumas medidas que tomou, nomeadamente a de defender, e conseguir, que ficasse em Moçambique o ouro dos salários dos moçambicanos que trabalhavam nas minas no Transval, e que durante décadas tinha engrossado as reservas do nosso banco emissor. Sem pretender colocar em questão a verdade do autor do livro nem a honestidade do governador Soares de Melo, manda uma outra verdade – a minha - , escrever que nesse período de governação saiu ouro de Moçambique para Portugal. Poderá ter sido a última remessa de ouro, fruto do trabalho de moçambicanos nas minas da África do Sul, para Portugal. Mas aconteceu. E está reportada nas páginas da Revista “Tempo” da época. Com texto da minha autoria e fotos de Ricardo Rangel. Fotos essas que provam a saída da viatura com o ouro desde a antiga Rua do Banco Nacional Ultramarino até à terminal de carga do Aeroporto Internacional de Maputo. Onde ficou, até à hora do embarque no avião, guardado por elementos da então Brigada da Policia Montada. Recordo que, solicitado a comentar este, mais um, saque a Moçambique no pós-25 de Abril, o Dr. Mário Machungo, então ao serviço do Banco de Fomento, recusou, delicadamente, fazer qualquer comentário. Não é segredo, todos o sabemos, a “verdade” da história tem sido sempre a verdade do vencedores. É necessário que os vendidos escrevem, também, a sua verdade sobre a história. Para que possa haver história.